Machismo na Índia: dossiê ressalta o árduo caminho das mulheres que lutam por igualdade

Estudo analisa cultura dominante de justificação da violência de gênero no país e a reação de movimentos feministas à subjugação histórica

Mais da metade das mulheres indianas com idade entre 15 e 49 anos acreditam que o homem tem direito de bater na esposa se ela discutir, sair de casa sem avisar ou desrespeitar os sogros, por exemplo. Esse é um dos dados reveladores contidos no dossiê “Mulheres indianas e o árduo caminho para a igualdade”, publicado nesta quarta-feira (13) pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

O estudo detalha as bases do machismo no país asiático, seu impacto na vida das mulheres e os processos de luta por igualdade.

A submissão não se limita ao hinduísmo, religião predominante no país, mas está prevista no chamado Código de Manu (200 a.C.-200 d.C). Esse texto histórico é amplamente citado pela direita hindu, que tem como principal representante o primeiro-ministro Narendra Modi, aliado de Jair Bolsonaro (sem partido).

Na Índia moderna, segundo o dossiê, “existe uma cultura dominante de justificação de uma série de restrições ao comportamento, aparência, mobilidade e interações sociais das mulheres, bem como aceitação de uma ampla variedade de atrocidades contra elas – como violência doméstica, abuso sexual e estupro.” 

Como resultado desse processo, ao menos um terço das mulheres indianas casadas sofreram violência doméstica por parte de seus maridos.

O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é uma instituição internacional, orientada pelos movimentos populares, focada em estimular o debate intelectual para o serviço das aspirações dos trabalhadores.

Aceitação

Para além dos dados de violência doméstica, o dossiê chama atenção para o fato de essa realidade estar enraizada e ser aceita por milhões de famílias indianas – incluindo as mulheres, mesmo aquelas que nunca leram o Código de Manu.

Essa aceitação de parte da sociedade se reflete na atuação dos principais partidos políticos, que se opõem à criminalização do estupro conjugal, por exemplo. A lei indiana sustenta que a relação sexual entre um homem e sua esposa com mais de 18 anos não pode ser considerada estupro, mesmo que não haja consentimento.

As desigualdades também vêm à tona no cuidado com a casa. Cerca de 92% das mulheres indianas em idade produtiva passam em média 5h15 por dia fazendo tarefas domésticas como cozinhar, limpar e lavar. Em comparação, apenas 30% dos homens participam das tarefas domésticas.

Ao contrário de outros países, a proporção de mulheres no mercado de trabalho não vem crescendo: entre 1999 e 2000, eram 41%; entre 2018 e 2019, caiu para 25%.

“As mulheres estão sendo forçadas a deixar de compor a força de trabalho, e não escolheram assim fazê-lo para viver no conforto. Em vez disso, foram forçadas a parar de trabalhar por causa das  mudanças estruturais na economia indiana ao longo dos anos – particularmente desde a liberalização de 1991 em diante – e o impacto que essas mudanças tiveram na economia rural”, observam os pesquisadores do Tricontinental.

“A porcentagem de mulheres desempregadas em ocupações remuneradas provavelmente aumentará ainda mais devido à crise econômica gerada pela pandemia, contexto no qual a mobilidade das mulheres ficou ainda mais restrita”, completa o texto do dossiê.

Como agravante, as estatísticas mostram que as mulheres trabalhadoras na Índia têm uma probabilidade maior de serem submetidas à violência física: quase 40% já sofreram, em comparação com 26% entre as não trabalhadoras.

Em luta

Em reação a essa subjugação histórica, movimentos feministas vêm obtendo conquistas importantes pelo país no último século.

Elas estiveram na linha de frente das lutas anticoloniais pela independência da Índia, em 1947, e participaram da luta armada camponesa em diversas regiões do país, junto a partidos comunistas.

O estudo analisa que as lutas das mulheres indianas têm duas vertentes históricas. A primeira, resultado dos movimentos de libertação, está ligada a mobilizações em torno de direitos políticos e sociais do conjunto da população. A segunda nasce da participação feminina no interior de movimentos camponeses e operários.

“Essa abordagem não é contraditória ou dicotômica à primeira; em vez disso, a unifica com o entendimento de que a luta contra o patriarcado envolve necessariamente um confronto com estruturas de classe exploradora e que as mulheres não são apenas mulheres, mas também camponesas, trabalhadoras agrícolas, trabalhadoras industriais”, diz o texto.

É dessa segunda vertente que se originam as organizações feministas de esquerda mais ativas na Índia de hoje, denunciando as opressões de classe, casta e gênero. 

O estudo do Tricontinental cita episódios emblemáticos de violência sexual, desde os anos 1970, que motivaram protestos e despertaram mobilizações feministas em todo o país, obrigando o Estado e a Justiça a darem respostas.

Estima-se que apenas 2% dos casos de estupro cheguem à polícia. Mesmo quando chegam, dificilmente prosperam, e na maioria das vezes a mulher é convencida a retirar a denúncia.

É sobre as mulheres dalit, sem casta ou de “casta inferior”, que a violência incide de maneira mais atroz. Quem também está no alvo são as mulheres muçulmanas. Hoje, o desafio de mudar essa realidade é ainda maior, uma vez que o primeiro-ministro Modi e seu partido, BJP, defendem o hinduísmo como religião hegemônica, ao contrário do que preconiza a Constituição de 1950.

“Embora o movimento de mulheres indianas tenha passado por muitos altos e baixos ao longo das décadas, ele se manteve resistente, adaptando-se às mudanças nas condições socioeconômicas e até mesmo se expandiu”, diz o texto do dossiê, chamando atenção para o protagonismo das mulheres nas lutas dos agricultores indianos, em plena pandemia.

“A enorme participação das mulheres rurais, que viajaram de diversos estados para se revezarem durante dias nas fronteiras da capital nacional, foi um fenômeno histórico. Sua presença no movimento dos agricultores oferece esperança para o movimento de mulheres em um futuro pós-pandêmico”, acrescentam os autores do Tricontinental.

Graças à resistência histórica das mulheres, alguns dados sinalizam perspectivas positivas. Em 1911, apenas 1% das mulheres sabiam ler e escrever. Pouco mais de um século depois, a taxa de alfabetização entre as indianas passou para 70% e, abaixo dos 24 anos, é de 90%. 

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