‘Minha história é de superação’, diz quilombola que é 1º lugar em Medicina

“Sou a primeira da minha descendência quilombola a entrar em uma universidade. Sou natural de Candiba, interior da Bahia, e desde pequena sempre quis ser grande, sempre almejei ajudar muitas pessoas e fazer o melhor para isso.

Meu esforço me ajudou a superar dificuldades sociais, racismo e desconfianças. A luta de uma vida valeu a pena e hoje, aos 21 anos, estudo medicina na UFPEL (Universidade Federal de Pelotas), onde passei em primeiro lugar no vestibular.

O caminho para alcançar essa meta começou bem na infância. Para alcançar meus sonhos, me mantive focada e sempre me destaquei na sala de aula. Estive entre os melhores, porém oportunidades sempre me eram negadas.

“Sofri muito com o racismo desde a infância”

Percebia com clareza que duvidavam da minha capacidade. Sempre fui muito esperta e talentosa e isso me proporcionava um destaque maior. No entanto, algumas pessoas que convivi trabalharam para me ofuscar de alguma forma.

Lembro perfeitamente de estar no primeiro ano do fundamental e na minha sala só havia crianças de pele clara e renda maior do que a minha. Recordo da mãe de um de meus colegas exigir que me mudassem de sala por achar que eu era má influência. Ela nem me conhecia ainda e já me julgava. Quando entendi o que tinha que enfrentar ao longo do caminho, resolvi me dedicar ainda mais.

Veja como funciona o racismo no Brasil: as pessoas te olham e te julgam preliminarmente por causa da sua cor ou de qualquer outro aspecto discriminatório.

Se fala muito em ‘vitimismo’ e ‘mi mi mi’ atualmente no país, mas quem pode avaliar nossas dificuldades, perseguições, do alto de uma vida de privilégios?

Só sabe quem sente da pele. Você tem que dar tudo seu e ainda ir além para poder ser reconhecido. Meu esforço sempre foi grande, mas muitas vezes não foi o suficiente. Em vários momentos, não consegui me encaixar no perfil institucional.

Tenho uma recordação nítida de quando fui humilhada por uma professora que não me deixou participar de uma apresentação cultural. Me excluiu sem considerar meu talento. Ao questionar muito, ela virou para mim na frente da turma toda e esbravejou: “Você não presta para o papel”. Foi a única justificativa dela. Ela só queria minhas amigas de pele clara.

Cai em prantos. Me senti a pior criança do mundo e comecei a me achar inferior.

“Criei um grupo de apoio para as crianças do meu quilombo”

Carlúcia com Luciene, sua mãe: “Sempre tive apoio e incetivo dela para ser quem eu quisesse ser”
Imagem: arquivo pessoal

Por mais sofrimento e humilhações que eu sofri, jamais desisti dos meus objetivos. Mesmo com tudo isso, eu tinha o apoio de minha mãe, que sempre me instigou a crescer e lutar por meus sonhos, ser quem eu quisesse ser.

Claro que tive professores maravilhosos também que acreditaram em mim. No ensino médio, eu já estava bem mais madura e confiante. Então, quis ajudar mais pessoas, como as crianças do meu quilombo. Vi que eles passavam por situações parecidas com a minha.

Foi aí que criei o grupo de dança Quilombo dos Anjos, o qual o intuito principal é fortalecer as raízes africanas, com bom desempenho escolar e boa conduta social.

No início, as crianças estavam desmotivadas, sofriam muito preconceito e eram desobedientes. Com a criação do grupo, elas passaram a ter outra visão e são mais felizes e autoconfiantes.

Vendo que já estava conseguindo mudar o rumo do meu quilombo e de minha família, eu prossegui querendo mais.

“Muitos riram de mim quando disse que queria fazer medicina”

Passei para o curso de enfermagem na Universidade Estadual da Bahia. Fiz o curso por três semestres, mas percebi que, apesar de ser um curso maravilhoso, eu queria poder fazer mais pelas pessoas e inspirar mais gente.

Então, resolvi que queria cursar medicina. Como sempre, muitos riram de mim, por ser um curso muito elitizado. Acharam que eu jamais conseguiria. Chegaram até me aconselhar a não deixar a segurança do curso de enfermagem.

Jamais me intimido. A vida me ensinou a ser forte. Aprendi lidar com isso desde criança.

Para me classificar no vestibular, precisei estudar muito. Muito mesmo. Foi uma rotina pesada, estressante e cansativa. Não tinha dinheiro para cursinho caro. Consegui um, mas era online e por causa de problemas com a internet não consegui estudar por ele.

Mas eu não parei. Eu não sabia estudar para provas de vestibulares. Achei que era só redação que passava. Tanto que na minha primeira tentativa tirei 940 na redação.

Conheci algumas pessoas maravilhosas que me ajudaram. Léo Vicari, Daniel Willing e Vina Queiroz são pessoas essenciais na minha aprovação. Comecei então a pegar o ritmo de estudos. Não foi fácil. Foram dois anos de tentativas até que surgiu a oportunidade de fazer o vestibular no sul do país.

Imagina uma pobre tendo que viajar quase três mil quilômetros por uma vaga não garantida. Juntei todas as minhas economias para isso. Minha família ficou muito preocupada e até me aconselhou a não ir. Mas eu sabia do tamanho do meu sonho.

Fui na primeira tentativa no fim de junho para a Universidade Federal de Rio Grande. Não obtive êxito. Voltei para casa e fiquei sabendo que haveria outro vestibular.

Porém eu não tinha mais dinheiro. Me esforcei demais fiz o possível e fui contra a vontade de minha família pois era uma viagem longa custosa e incerta.

Tive alguns amigos que me apoiaram muito nesse caminho. E então eu fui e dei o meu melhor. Voltei com uma sensação de dever cumprido, sabe?

Até que saiu o resultado e fui aprovada em primeiro lugar. O que mais me alegrou foi ver o sorriso de minha mãe. Uma sensação de alivio ver meus parentes vibrarem, ver que minha bisavó pode dizer que terá uma bisneta médica.

Meus primos se inspiram em mim e agora querem fazer um curso superior, uma vez que achavam impossível. As aulas já começaram. Estou no primeiro período. Por causa da pandemia, ainda estou à distância, mas por enquanto são só teorias.

Os colegas e os profissionais são maravilhosos. Fui muito bem acolhida pela UFPEL. Já penso até nas especialidades. No momento tenho muito interesse em neurocirurgia, mas meu coração bate forte por cardiologia.

Essa é minha história. Cheia de obstáculos e superações. O que eu tiro de tudo isso? Que desistir não é opção. Não desista jamais. Por mais que o mundo te diga não, se você acreditar no seu propósito, você consegue.” Carlucia Alves, 21 anos, estudante de medicina, da comunidade quilombola Lagoa dos Anjos, no município de Candiba, Bahia.

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