Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, foi a convidada principal da mesa de debate sobre a Lei de Cotas (12.711) e sobre a Lei 10.639, realizada na terça-feira (4/4) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Aberto ao público externo, o evento foi a aula inaugural do Programa de Pós-graduação e Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Eicos), do Instituto de Psicologia (IP) da UFRJ. Também estavam presentes na mesa Ivana Bentes, pró-reitora de Extensão; Ana Cunha, diretora do IP; Katya Gualter, diretora da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD); Janete Nascimento, mestranda do Eicos; e, como mediadora, Rosa Pedro, diretora de pós-graduação do IP.
A ministra iniciou sua fala dirigindo-se aos estudantes da Universidade e destacou a importância de ter sido recebida por tantos jovens negros em uma instituição acadêmica. Segundo ela, aquela era a primeira vez que isso acontecia. Com o auditório lotado, Anielle relembrou as dificuldades que enfrentou como jovem negra da periferia durante o período em que estudou na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Além disso, falou da relevância que a bolsa de 300 reais desempenhou para a sua permanência na Universidade e dos professores racistas que encontrou pelo caminho.
O destaque inicial da fala de Anielle foi a importância do conhecimento na luta por uma sociedade antirracista e igualitária. Para ela, a maior arma contra o racismo e a favor da inclusão é o fortalecimento do povo negro, a partir do próprio conhecimento, cultura e inteligência. Obras de intelectuais como Bell Hooks, Angela Davis, Sueli Carneiro e Conceição Evaristo foram citadas pela ministra como leituras essenciais para os estudantes e como importantes ferramentas na sua trajetória de vida, principalmente depois da perda de sua irmã, Marielle Franco.
“O conhecimento de vocês ninguém tira. Só vocês sabem o que é pegar três ônibus e um trem para a Universidade e se debater com um professor racista. Então, escrevam, produzam e leiam cada vez mais, porque isso é de vocês. O conhecimento de vocês ninguém tira”, enfatizou Anielle.
Como fortalecer as leis?
A Lei 12.711, de agosto de 2012, prevê a reserva de 50% das vagas em universidades e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a estudantes do ensino médio público. Dentro desse percentual, metade das vagas são destinadas a estudantes com renda per capita familiar mensal igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e a outra metade àqueles com renda maior do que essa. Cada faixa de renda reserva um percentual de vagas a candidatos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas e a quantidade delas é definida de acordo com a proporção de cada grupo no estado onde está localizada a instituição de ensino. Ou seja, quanto maior o número de negros no estado, maior será o número de cotas raciais disponíveis no local. Desde que foi sancionada, a Lei de Cotas é considerada uma legislação bem-sucedida. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em 2001, 22% dos estudantes de graduação, entre instituições públicas e privadas, eram negros. Alguns anos após a aprovação da lei, em 2015, esse percentual alcançou 44%, o dobro da quantia anterior.
“A lei de cotas é a maior política reparatória desse país. Mas, quando falamos de cota e de acesso, também temos que falar de permanência”, completou a ministra.
Já a Lei 10.639 torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas públicas e particulares, desde o ensino fundamental até o ensino médio. Sua aplicação dentro das salas de aula tem sido um grande desafio, causado em parte pela falta de capacitação de professores. Em entrevista ao Conexão UFRJ, Anielle explicou que o Ministério da Igualdade Racial vem estruturando medidas para reverter a situação: atualmente, a pasta está realizando diagnósticos e levantamentos das escolas onde a Lei 10.639 está sendo aplicada e onde não está. Além disso, a ministra ressaltou a importância da ação conjunta com outras pastas do Governo Federal para que os projetos do Ministério da Igualdade Racial sejam desenvolvidos, uma vez que a pauta racial perpassa por diversas áreas sociais. Por isso o diálogo entre ministérios é fundamental.
“Com esse levantamento, nós vamos poder incluir ações afirmativas dentro do Plano Nacional e ver onde nós poderemos aplicar. Isso tudo em conjunto com o Ministério da Educação, porque sozinhos não dá para fazermos nada”, explicou.
O que tem sido feito
A ministra relembrou, emocionada, do decreto assinado no dia 21/3 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reserva um percentual mínimo de 30% de vagas a pessoas pretas em Cargos Comissionados Executivos (CCE) e Funções Comissionadas Executivas (FCE) na Administração Pública Federal. “A importância desse ato político é imensurável. Vamos ter, pela primeira vez, uma Esplanada 30% preta no Brasil, não só nos cargos básicos, mas também nos de liderança. Isso é importante e fortalecedor”, destacou.
Anielle também contou que a primeira ação do Ministério foi criar um banco de currículos de pessoas pretas. Cerca de 6.000 currículos já foram recolhidos e, em breve, mais cidadãos poderão enviar. A proposta é que cada vez mais pessoas pretas estejam no mercado de trabalho. Afinal, existem negros qualificados para adentrar em todos os espaços profissionais.
“É simbólico hoje eu, Anielle, ser ministra da Igualdade Racial. Mas falei para o presidente Lula, na primeira reunião ministerial, que quero entregar trabalho e não só simbolismo. Eu tenho que entregar trabalho, porque o povo preto tem urgência”, ressaltou.
Anielle se emocionou ao lembrar de sua irmã, Marielle Franco, assassinada em 2018, e deixou claro que a vereadora sempre foi uma inspiração para ela por sua dedicação aos estudos, ao trabalho e por sua incessante luta na defesa dos interesses da população e cumprimento dos direitos humanos.
“Eu acho que nunca vou entender por que tinha que ser a minha irmã… Mas quando entro em uma sala como esta, penso no meu passado, penso onde estou, penso no tanto de esperança que a gente tem trazido para o povo preto e entendo por que estou aqui hoje.”
O que diz a Universidade
Anteriormente ao discurso da ministra, as outras integrantes da mesa acrescentaram falas ao debate em relação ao passado e ao futuro das Leis 10.639 e 12.711 no Brasil. Como representante da Reitoria, a pró-reitora de extensão, Ivana Bentes, relembrou algumas medidas adotadas na UFRJ nos últimos dez anos. Entre elas, a criação da Comissão de Heteroidentificação na Universidade, que tem como principal objetivo combater as fraudes nas cotas raciais, e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da UFRJ, que visa à equidade étnica e racial e à valorização das culturas negra e indígena a partir de atividades de ensino, pesquisa e extensão. Segundo Ivana, a produção de conhecimento é plural e diversificada e o objetivo da Universidade se dá em mostrar isso aos estudantes, tanto aos que chegam, quanto aos que saem.
“Não basta a inclusão dos sujeitos diversos. A matriz de produção do conhecimento tem que mudar. As matrizes de conhecimento das culturas africanas e as cosmovisões indígenas, por exemplo, precisam estar aqui como produtoras do conhecimento. Logo, essa disputa na produção de conhecimento é decisiva. Não existe uma ciência neutra. Ela tem gênero, cor e posição”, disse a pró-reitora.
Também integrantes da mesa, Katya Gualter e Rosa Pedro destacaram os enormes avanços que as leis em questão representaram na Universidade, principalmente na redução das desigualdades. No entanto, ambas concordaram que ainda há muito a ser feito na luta para uma UFRJ e, consequentemente, uma sociedade mais inclusiva e plural. Além de concordar com as colegas de mesa, Janete Nascimento contou sua experiência como mulher preta, mãe, solteira, residente da Baixada Fluminense e, ao mesmo tempo, uma mestranda de 56 anos da UFRJ. “Na filosofia africana, há um provérbio que diz que ‘todo tempo é tempo de começar’. Aos calouros e discentes do ano de 2023, é tempo de começar para vocês. Então comecem e permaneçam. Sejam bem-vindos a este espaço, que deve ser de “todes” nós e não privilégio de alguns. Este espaço precisa ser nosso e precisa ser habitado por nós”, defendeu a estudante.