Não entendemos errado, o que aconteceu com Angelo Assunção foi racismo

A sofisticação do racismo brasileiro está no fato de embora serem muito visíveis as desigualdades entre negros e brancos, muita gente ainda afirma e acredita na inexistência do racismo. 

Por Gabriel Rocha no Brasil de Fato

Na semana do 13 maio deste ano, completando 127 de abolição “legal” da escravidão negra no Brasil, vemos o episódio em que três ginastas brancos, Arthur Nory, Fellipe Arakawa e Henrique Medina, através de vídeo publicado na rede social Snapchat veiculam o racismo através de “brincadeiras” (como é de costume no Brasil) ao ginasta negro Angelo Assunção, campeão mundial em ginástica artística.

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A Lei Áurea, longe de ser um solene ato de solidariedade ou benevolência da princesa Isabel para a população escravizada, resultou de um longo processo de lutas nas senzalas, nos quilombos, nas fazendas e nas cidades, envolvendo abolicionistas, negros escravizados e alforriados, que se rebelaram contra aquele sistema que os oprimia e os considerava “coisas” – objetos de compra e venda, peças de uma engrenagem – e não seres humanos.

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Há todo um aparato ideológico conservador e paternalista inspirado em Gilberto Freyre [autor de Casa-Grande & Senzala, 1933] presente em boa parte da produção acadêmica e na cultura de massas que pinta a escravidão brasileira com tons cor-de-rosa, O objetivo é atenuar as tensões que existiram entre opressores e oprimidos durante o regime escravista. Do mesmo modo, buscam sufocar as tensões presentes no processo abolicionista e em nossa história pós-abolição. Neste mesmo aparato ideológico, se inscreve a ideologia da democracia racial que pretende negar a existência do racismo no Brasil.

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Hoje, contamos com uma produção acadêmica e militante significativa que aponta para as problemáticas da abolição da escravidão no Brasil, a qual indenizou escravocratas e lançou a população negra às margens da sociedade nas situações de maior vulnerabilidade: baixo índice de escolaridade, alto índice de mortalidade infantil, alto índice de jovens e adultos do sexo masculino assassinados pela polícia.

No trabalho, os negros passaram a ocupar os postos de menor prestígio e remuneração. As periferias das cidades, onde os serviços de saneamento básico e iluminação são precários ou inexistentes, são majoritariamente habitadas por negros.

Na “transição” da economia escravista para a liberal, a população afro-brasileira viu o Estado investir altas cifras nas imigrações europeia e asiática (na época preferindo a europeia) e silenciar sobre qualquer forma de reparação dos danos (irreparáveis) causados pela escravidão. As autoridades políticas e econômicas do pós-abolição não moveram uma palha sequer em favor de integrar o negro na sociedade republicana.

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A República brasileira nasceu impregnada de ideais de branqueamento, ou seja, foi fundada no racismo. Porém, historicamente se esconde atrás da ideologia da “democracia racial”, a qual nega a existência do racismo entre os brasileiros.

A sofisticação do racismo brasileiro está no fato de embora serem muito visíveis as desigualdades entre negros e brancos, muita gente ainda afirma e acredita na inexistência do racismo. Mas o racismo existe e – infelizmente – resiste no Brasil.

É preciso ser muito desatento e ingênuo (ou muito cínico) para não perceber que a distribuição de privilégios aqui é racializada. Isso é demonstrado nas melhores condições sociais concentradas entre os brancos e nas piores concentradas entre os negros.

O racismo resiste quando a lei de cotas nas universidades é aprovada por unanimidade no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, e, em 2015, a USP, que não aderiu à essa lei, continua tratando o fato como um assunto a ser discutido em um “futuro próximo”.

O racismo existe nos dizeres cotidianos em que o “cabelo do negro é ruim” e o olho azul é o mais bonito. Quando a mulher negra é boa para o sexo, mas não para um relacionamento duradouro.

O racismo existe nas “brincadeiras” feitas por pessoas que se dizem “amigas”, como neste caso recente dos atletas da ginástica artística, que comparam uma pessoa a “um celular que não funciona” e à “um saco de lixo”.

São essas mesmas “brincadeiras” que, na infância, influenciam negativamente o rendimento escolar das crianças negras – levando muitas vezes à evasão escolar – e na sociabilidade destas – criando complexos de inferioridade entre negros e de superioridade entre brancos. Essas mesmas “brincadeiras” corriqueiras ao longo de uma vida trazem consequências psicológicas e materiais nefastas para muita gente. Não é brincadeira, é racismo, é crime.

Na escravidão, os negros eram desumanizados e tratados como “coisas” pelos escravocratas. Após 127 anos de abolição, o racismo continua operando no sentido da desumanização dos negros, comparando-os a macacos ou a celulares quebrados e sacos de lixo. Como devem pensar também os policiais que executam friamente jovens negros ou grupos de linchadores que espancam negros e uma jornalista que os apoia em rede nacional.

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O racismo resiste quando achamos tudo isso normal e seguimos como se nada tivesse acontecido, como pretende esta equipe brasileira de ginástica que, vendo a repercussão negativa do fato, publica um vídeo no qual o próprio Angelo – vítima do racismo – aparece dizendo que “não tem problema, a gente é amigo”, e os demais envolvidos no caso pedem desculpas, mas afirmam que “era um momento de brincadeira” e as pessoas entenderam errado. Tem problema, sim. E não entendemos errado, o que aconteceu não foi brincadeira, foi racismo.

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*Gabriel dos Santos Rocha é graduado em história, mestrando em história social pela Universidade de São Paulo e bolsista FAPESP.

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