Não há mais espaço para violência obstétrica contra mulheres negras

FONTEUOL, por Larissa Cassiano
Dra. Larissa Cassiano (Imagem retirada do site larissacassiano.com.br)

Falar sobre violência obstétrica no Brasil durante a semana da consciência negra é muito importante para mim. Escrevo o texto como uma mulher negra, médica ginecologista e obstetra que defende a humanização do parto e vive diante do cenário em que 66,4% das mulheres que morreram em 2019 por causas obstétricas eram negras.

Sobre esse tema alguns dados são relevantes:

  • A violência obstétrica atinge uma em cada quatro mulheres no nosso país; dessas, 65,9% são negras;
  • Somente 27% das mulheres negras gestantes tiveram acompanhamento pré-natal adequado durante a gestação;
  • Em estudo publicado pela revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, quando bebês negros foram cuidados por médicos negros a taxa de mortalidade caiu de 39% a 58%. Por outro lado, quando eles foram atendidos por médicos brancos tiveram até três vezes mais probabilidade de morrer;
  • Em 3 de maio de 2019, o Ministério da Saúde se posicionou considerando que o termo “violência obstétrica” tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado.

A violência obstétrica se refere a todos os tipos de violência (psicológica, física…) que ocorre no pré-natal, parto, pós-parto e aborto. Em um momento que deve ser especial para todas, com ambiente acolhedor, humanizado, profissionais capacitados e respeitando os desejos da paciente.

Infelizmente no Brasil não é isso que se vê em muitos lugares. Partos em maternidades com falta de leito, ausência do acompanhante, falta de anestesia, uso indiscriminado de ocitocina, bebê retirado ou nem deixado no colo da mãe após o nascimento, entre outras situações que causam medo, ansiedade e violência para alguém que quer ter um filho.

FOTO: Nappy

Para mulheres negras, os dados mostram o quanto essa violência é ainda mais intensa e capaz de aumentar riscos que impactam significativamente nas taxas de mortalidade materna. Reconhecer esse fato e buscar por condições é responsabilidade de todos os órgãos e profissionais envolvidos na assistência.

A representatividade é um dos passos, mas sabemos que isso é parte de uma construção que pode levar tempo, principalmente sabendo o quanto somos diversos, mas ter equipes treinadas para acolher é algo totalmente possível, equipes capazes de aproximar a paciente, acolher e ouvir independente da situação é extremante necessário para que situações de racismo não aconteçam, isso por muitas situações serem tão estruturais do sistema que as pessoas incorporam como uma verdade, e apenas com o conhecimento e argumento podemos modificar esses conceitos.

Um deles que é repetido em muitos hospitais é o de que mulheres negras suportam mais a dor, isso é mentira. A base talvez tenha ponte em dois pensamentos: o primeiro de que pessoas escravizadas que sobreviviam a chegada até o Brasil eram mais fortes, pois as condições dos navios eram as piores possíveis; e segundo, muitas mulheres negras, por medo de violências maiores, se calam frente à violência do sistema, mas isso não significa que elas não sentem dor e nem que a dose anestésica pode ser menor.

Nesse mesmo campo temos as tranças e cabelos sintéticos utilizadas por mulheres negras, diversos profissionais orientam a sua retirada, pelo potencial risco inflamável desses materiais associado ao uso do bisturi elétrico. Sobre isso é importante dizer que eu já fiz diversas pesquisas científicas e não consegui encontrar nenhum artigo científico com relevância sobre tal afirmação, porém confesso que já ouvi diversas histórias por corredores de hospitais e apenas com cílios sintéticos vi fotos reais de queimadura.

Então, o que temos são profissionais que ficam apreensivos, pois sim, o material sintético é inflamável, mas o cabelo humano também é, assim como diversos itens que fazem parte da cirurgia. Isso deveria ser informado a todas as pacientes, esse risco possível, porém sem base na literatura.

Entretanto, o que se coleciona são histórias de mulheres que tiveram seus cabelos cortados, ofensas feitas sem nenhum tipo de explicação e sem que o próprio profissional soubesse exatamente qual o risco e o porquê de solicitar a retirada do cabelo.

O cabelo dessas mulheres para alguns pode ter só um peso financeiro, mas para muitas mulheres é parte da sua história, da sua ancestralidade, um sinal de beleza, então quem faz isso pensando em coisas como: “cabelo cresce” ou “depois faz de novo”, precisa compreender o quanto traços e detalhes podem carregar uma história.

Que todos os acontecimentos, eventos e informações sobre o mês de consciência negra possam perdurar pelo ano. E nos casos de violência obstétrica a denúncia é a melhor defesa, buscar a ouvidoria do hospital, conselho de classe do profissional envolvido, defensoria pública ou a delegacia. As histórias não podem se tornar apenas estatística.

Referências:

Brasil. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde – Datasus. Óbitos maternos. [Internet]. 2019

CURI, Paula Land; RIBEIRO, Mariana Thomaz de Aquino; MARRA, Camilla Bonelli. A violência obstétrica praticada contra mulheres negras no SUS. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro , v. 72, n. spe, p. 156-169, 2020 . Disponível em pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672020000300012&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 16 nov. 2021. http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.156-169.

Tesser CD, Knobel R, Andrezzo HFA, Diniz SG. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Rev Bras Med Fam Com 2015; 10(35):1-12.

Ministério Público Federal [homepage na internet]. MPF recomenda ao Ministério da Saúde que atue contra a violência obstétrica em vez de proibir o uso do termo [acesso em 16 nov. 2021]. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/mpf-recomenda-ao-ministerio-da-saude-que-atue-contra-a-violencia-obstetrica-em-vez-de-proibir-o-uso-do-termo.

-+=
Sair da versão mobile