“Não sofro com a discriminação racial, mas aproveito o espaço da mídia para denunciar, combater. E vejo isso como uma missão”, afirma a atriz Zezé Motta

FONTEKátia Mello
Foto: André Wanderlei

Aos 74 anos, a atriz e cantora Maria José Motta de Oliveira, mais conhecida como Zezé Motta, está a todo vapor, em plena gravação de dois novos filmes: “Intervenção”, de Rodrigo Pimentel, com direção de Caio Cobra, sobre a rotina dos policiais nas Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) do Rio de Janeiro, e o longa “M8 – Quando a morte socorre a vida”, dirigido pelo cineasta Jeferson De e inspirado em livro de mesmo nome do escritor Salomão Polak.

foto de André Wanderlei

Zezé Motta não para. Em abril deste ano, lançou o CD “Missão”, em que solta a voz no samba. Com dezenas de filmes, novelas e peças, ao completar 50 anos de carreira no ano passado, a Xica da Silva de Cacá Diegues recebeu inúmeras homenagens. E as honrarias continuam. Neste mês, a atriz foi a escolhida para ser a homenageada do 1º. Festival Internacional de Mulheres (FIM) que aconteceu em São Paulo, com a apresentação de 28 filmes. Entre as gravações, Zezé concedeu esta entrevista à coluna Geledés no debate, em que relata seu protagonismo maior: o combate ao racismo e a luta contra a discriminação de mulheres e LGBTs.

Geledés– Você acaba de receber mais uma homenagem no Festival Internacional de Mulheres (FIM). Como é ser um ícone para atores negros e atrizes negras?

Essas homenagens são importantes porque significam o reconhecimento de uma batalha para construir uma carreira. Iniciar uma carreira em qualquer segmento é difícil e mantê-la é mais complicado, ainda mais com os conflitos que temos, sejam eles de gênero ou de cor. Agradeço a Deus todos os dias por ter batalhado e conseguido. Vejo com naturalidade ser uma referência para esses jovens negros e negras. A gente está aqui nesse mundo para se unir. Assim como tiveram pessoas que me ajudaram, acredito ser importante fazer algo pelos outros. Não ser generoso com o próximo que é antinatural para mim. Não faço mais do que meu dever em dar minha contribuição para virar esse jogo.

Geledés –Como foi a sua percepção de racismo em sua carreira?

Quando as coisas deram certo para mim, eu sabia que alguma coisa estava errada em relação às questões sobre o machismo e o racismo. Eu já tinha passado por preconceitos, mas eu não tinha um discurso e não sabia cuidar desses assuntos. Depois de fazer o filme “Xica da Sliva”, que fez muito sucesso, eu tive que dar muitas entrevistas e era sempre confrontada. Apesar de já fazer parte do movimento negro, meu discurso ainda estava capenga. Então, tive o privilégio de conhecer a Lélia González (antropóloga) num curso de cultura negra dado por ela. Em sua aula inaugural, em que não só havia negros e mulheres, mas pessoas interessadas em combater o racismo, como intelectuais, professores, alunos de outras áreas que não fossem a cultura, Lélia disse que sabia a razão de todos nós estarmos lá. “Nós não temos tempos para lamúrias. Temos que arregaçar as mangas e virar esse jogo”, disse Lélia. E essa frase ficou definitiva na minha vida. Não sofro com a discriminação racial, mas aproveito o espaço da mídia para denunciar, combater. E vejo isso como uma missão.

“Vejo com naturalidade ser uma referência para jovens negros e negras. A gente está aqui nesse mundo para se unir. Assim como tiveram pessoas que me ajudaram, acredito ser importante fazer algo pelos outros.”

Geledés– A propósito, em seu novo CD você canta a música “Missão”. Então qual é a missão de Zezé Motta?

A minha missão é exercer a minha profissão de atriz e cantora com dignidade e ser militante de várias causas. Não é só o racismo que me incomoda. Incomoda-me a discriminação com gays, a violência contra as mulheres. Ainda hoje, mesmo a mulher sendocapacitada para determinado trabalho, ela enfrenta discriminação. E nessa luta, as mulheres estão de parabéns, porque continuam a batalhar. Outro dia peguei um avião cujo comandante era uma mulher; li uma notícia sobre uma comandante de navio, outra que trabalha com guincho, ou seja, devagarzinho estamos tomando espaços em que os homens se sentiam donos.

Crédito Fred Confalonieri

Geledés– No filme “Divina Comédia”, dirigido por Toni Venturi, você faz o papel de Deus. Como foi quebrar esse estereótipo?

Eu embarquei na proposta achando-a muito interessante. Não vi nenhuma crítica explícita, mas acredito que muita gente tenha ficado chocada, porque tudo o que é considerado grandioso e bonito é masculino, como por exemplo, no Brasil, ser bonito é sinônimo de ser loiro. E para o mundo, Cristo é loiro de olhos azuis e Deus é homem. Eu não sou ateia, mas Deus para mim não é um velhinho branco de cabelo e barbas brancas. Deus para mim é essa força da Natureza. E agora falando com você me dei conta que a Natureza é feminina (risos).

Geledés– São 50 anos de carreira em que você é protagonista de fortes papeis de mulheres negras, começando por Xica da Silva. Em 1994, fez a novela “Próxima Vítima”, em que pela primeira vez, na maior emissora do país, uma família negra era protagonista. Como vê hoje a participação de atores negros e negras no cinema, no teatro e na televisão?

Toda vez que eu vou ver algum filme, ou vou ao teatro, já virou um ritual contar quantos negros fazem parte daquela obra. Houve um tempo em que os negros só participavam como atores quando o tema era escravidão. Eu percebo que existe uma preocupação por parte dos autores, dos diretores, em contemplar essa questão, ao convidarem negros para serem protagonistas. Mas ainda é um processo muito lento; falta ainda muito para os negros e as negras sejam protagonistas em todos os espaços, em todos os setores. Sabemos que esse papo de democracia racial é mentira.

Foto Evaldo Gomes

Geledés-Quais foram os preconceitos que sofreu como atriz?

Fiz par romântico com o ator Marcos Paulo (ator e diretor morto em 2012) na novela “Corpo a Corpo”. Fazia uma paisagista e fiquei muito feliz de participar do processo de discussão sobre o racismo em pleno horário nobre. Mas quando fizeram uma pesquisa com os telespectadores, nós da novela ficamos muito chocados com a reação de certas pessoas. Teve um cara que falou que não acreditava que o Marquinhos (Marcos Paulo) estava precisando tanto desse dinheiro para passar pela humilhação de beijar uma negra horrorosa. Teve uma moça que disse que quando tinha cenas de amor entre a gente, ela mudava de canal, porque não acreditava no par romântico. Outro homem disse que se a TV Globo o obrigasse a beijar uma negra como eu, ele iria lavar a boca quando chegasse em casa. Foi um choque para todos.

Geledés –Inclusive, quando a atriz Taís Araújo recebeu ataques na internet nesse ano, você saiu em defesa dela contando esses episódios, não foi?

Sem dúvida! Quando se vê uma cena assim, parece que dos dez passos que avançamos, retrocedemos em 20. E isso acontece com nossos atletas, nossa repórter Maju (apresentadora do tempo no Jornal Nacional), a Taís (Araújo). Todos os negros e as negras que fazem sucesso incomodam muito.

Geledés – Você trabalhou como conselheira de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique e foi convidada por Benedita da Silva, hoje deputada (PT), para ser superintendente da Igualdade Racial no governo fluminense durante a gestão Lula. Como foram essas experiências?

Foram muito interessantes. Fui conselheira de Direitos Humanos no governo FHC, com reuniões periódicas em Brasília, para que cada um dos integrantes levasse suas preocupações em relação às questões humanistas, seja a violência contra a mulher, os assassinatos de gays, etc. Estar na Superintendência de Igualdade Racial do governo do Rio foi incrível, porque minha função era também cuidar dos ciganos, por quem existe um grande descaso, cuidar das questões indígenas. Vou contar algo que me surpreendeu em relação à minha pasta, sobre as minhas funções. Encontrei nela o item saúde da população negra. E pensei comigo: mas qual a razão de tanta especificidade sobre a saúde do negro? Só aí tomei conhecimento que determinadas doenças são pertinentes aos negros, como vitiligo. Foi bem difícil e doloroso ter de lidar com isso.

foto Evaldo Gomes

Geledés –O que foi doloroso?

Fiquei sabendo, por exemplo, que mulheres negras recebem doses menores de anestesia, porque supostamentesão mais fortes e, portanto, aguentariam mais o tranco. Nessa época, batalhei por algo que ainda não desisti: cobrar do governo uma campanha de anemia falciforme (doença hereditária que altera os glóbulos vermelhos, causando anemia), que é mais incidente nos negros. Aliás, já passou da hora de se fazer uma campanha com esse tema. As pessoas precisam saber que essa doença tem tratamento e que se ele não ocorrer, pode levar a óbito.  O teste do pezinho já aponta essa doença. É uma campanha que quero levar adiante. Já cobrei de dois ministros para que ela aconteça.

Geledés– E como foram as visitas aos quilombos durante o período em que esteve na Superintendência?

Fizemos pesquisas nos quilombos e fiquei muito abalada. Há quilombos onde não há saneamento básico nem luz elétrica. Testemunhei uma realidade muito triste, em que as crianças vão andando a pé por uma hora até chegarem à escola. Elas já chegam cansadas, já que não há ônibus. Se nas escolas públicas nos grandes centros existe essa maldade de roubo das merendas, imagine o que acontece nas escolas dos quilombos.

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