“Nós morremos por causa da nossa cor” – entrevista com Dina Alves

Por Marcio Alexandre M. Gualberto Do Iniciativa Negra

Sua tese de mestrado “Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe da punição em uma prisão paulistana” é densa e impactante, é um tema triste e profundo, pois por trás das informações ali apresentadas e analisadas, há uma história, uma personagem, uma mulher que vive o dia-a-dia do racismo e da humilhação do aprisionamento.

Dina, ao contrário do tema sobre o qual se debruça, é suave, sensível e traz consigo uma história de vida que a constrói como sr humano e determina sua trajetória acadêmica.

Dina Alves se apresenta assim:

Nasci de cor “parda” na cidade de Ipiaú-Bahia no ano de 1975. Filha de pai agricultor, chamado José Bananeira e de mãe lavadeira, merendeira e escritora, conhecida como Maria Morena. Logo que nasci negaram a minha cor negra e tatuaram a cor “parda” na minha pele através do cartório de registro civil. Fiz o primário na precariedade da escola Job Gonçalves Lopes, onde utilizávamos os pneus de carros como banco escolar para escrever, ler, somar e multiplicar. Foi ali que me passaram o “raio x da cor” e nunca fui aprovada para ser a rainha do milho além de permanecer semestres decorando a tabuada de multiplicar, dividir e somar como punição exemplar.  

Foi nessa época que minha família recebia assistência da igreja católica, através da freira, Irmã Irene, enviada da Itália para Ipiaú para prestar assistência à população pobre. Ela chegou a rua da Granja num dia de sol forte, com um saco de pão duro em uma mão, e uma bíblia sagrada, na outra. Foi ela, a freira, que nos mostrou os primeiros ensinamentos de catequese.  Nos ensinou a rezar o terço, ler a bíblia, cantar, acreditar em Deus, no papa e em todos os santos da igreja católica. Nas festas da padroeira “Nossa Senhora Aparecida” a afirmação da minha cor “parda” era naturalizada nas dezenas de vezes em que eu cantava o cântico do padre Zezinho, “mãe do céu morena, senhora da América Latina”, que negava a cor negra que eu trazia na cara. 

Minha trajetória como atriz ativista começou ainda na minha adolescência, nas comunidades eclesiais de base e na ONG Propágulos Prum Ambiente Ecologicamente Legal – PAPAMEL. Na minha atuação artística optava por textos de cunho político que criticassem as questões sociais locais. As apresentações se davam, principalmente, nas praças da cidade. Na década de 1990 fui empurrada para São Paulo por ser arrimo de família. No trabalho o meu rosto e minha fala nordestina traduziriam a experiência das políticas de morte implantadas pelo governo de Antônio Carlos Magalhães e seus sucessores da qual me considero uma sobrevivente. Então em São Paulo, no lugar ocupado como empregada doméstica, nas mansões do jardim Virginia e como balconista, no Pão de Açúcar, descobri minha cor provinda da senzala – a cor Preta.

O quarto de empregada, o confinamento do balcão do supermercado, no morro da Vila Baiana, no Morrinhos III e no Areão, todos estes espaços periféricos, demarcados historicamente, afirmavam, dia e noite, qual era meu lugar não lugar na sociedade da democracia racial. A reprovação nos vestibulares da UNESP, FUVEST e UEL me fez ser bolsista no curso de Direito da UNAERP/RP em 2005. Nesse universo branco, classista, racista, facista, reacionário e masculino, permaneci por cinco anos, com o estereotipo de “a nordestina esfomeada”. Em 2009 fui aprovada na prova da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB/SP e me tornei Advogada.

Na condição de advogada sofri diversos preconceitos, comumente ouvia de outras advogadas: “Ela tem cara de empregada doméstica”, e “a profissão mais adequada para você é a de Assistente Social”.

A minha formação política no PAPAMEL, no MOVIMENTO NEGRO, nas PASTORAIS ECLESIAIS DE BASE e meu ativismo como ATRIZ engajada na luta feminista, racial, política e anticapitalista foram ferramentas importantes para meu empoderamento e emancipação humana. Nos últimos anos tenho trabalhado junto a organizações populares do movimento negro – especificamente no Comitê contra o Genocídio da População Negra e no Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas – Adelinas, na luta pela emancipação social negra, na denúncia dos grupos de extermínio de jovens negros e na luta pelas ações afirmativas nas universidades públicas. Seja como advogada, ou como atriz, minha práxis nestes espaços informam para a leitura dos processos de opressão e subordinação da população negra. Estas são experiências únicas travadas desde o ventre da minha mãe, até os dias atuais na difícil luta cotidiana de SER Mulher, SER Nordestina e SER Negra.

Vamos à entrevista:

Você afirma que “nossa existência já é um crime”. Explique o por quê desta afirmação.

Porque nós, negras, negros e indígenas, ainda estamos na luta pela reafirmação da nossa humanidade e existência política. Qual o crime cometido por Claudia Ferreira da Silva, morta e arrastada nas ruas do Rio de Janeiro? E o que dizer de Luana Barbosa dos Reis, mulher preta e lésbica, espancada até a morte na frente do filho por três policiais? Porque somos o segundo país das Américas com o maior número de encarcerados? Qual a cor e o gênero do cárcere no Brasil? Porque se mata tantos jovens negros no Brasil? Responder essas questões talvez nos faça refletir sobre a condição da nossa existência enquanto negros, negras e indígenas. Nós morremos e somos criminalizados pela condição da nossa cor. O Direito Penal brasileiro conserva essa concepção de controle corporal baseado nesse “saber racial” que reserva aos corpos negros a culpabilidade e a punição. Basta ser pobre ou ser negro para ser criminalizado ou morto nas frequentes chacinas em qualquer favela/comunidade brasileira.

Não esqueçamos os crimes de maio de 2006. As mães daqueles jovens estão até hoje buscando os corpos negros dos seus filhos e filhas. Por isso “existir” para nós é um desafio. Não temos o direito de nascer, crescer e morrer de acordo com a teoria biológica. Nossa morte é produzida diariamente. A formação do pensamento criminal permeado pelas teorias racistas do eugenismo* e do evolucionismo foram fundamentais para as bases desse direito criminal como um direito antipobre e antinegro que vigora até hoje na mentalidade do poder judiciário. Por isso a lei aparece para nós sempre como punição, nunca como garantia de direitos.

Ser negra, pobre e mulher são fatores decisivos que influenciam as decisões judiciais na aplicação da lei penal e no encarceramento em massa no Brasil. Quem julga essas mulheres?

Cada vez mais homens brancos, jovens, oriundos da classe média alta, compõem o judiciário brasileiro e são eles que definem o futuro de vida e de morte de quem ocupa a ponta do microtráfico de drogas. Ficou evidenciado, por exemplo, que as categorias de classe, raça e gênero produz um complexo e difuso sistema de privilégios e de desigualdades que se refletem nessa realidade carcerária.

Agora, é preciso ir além da composição demográfica do judiciário, é preciso entender esse legado da escravidão no Brasil como constituinte do atual sistema penal, ou seja, entender o continnum entre escravidão e democracia e perceber que nosso sistema de justiça é só uma réplica da .

Ainda que a própria Constituição preconize a igualdade formal e material, que garante a todas as pessoas os direitos fundamentais e sociais, para alguns grupos sociais existem mecanismos de discriminação que fazem com que algumas pessoas sejam menos iguais ou menos humanas, ou não humanas. As práticas rotineiras de policiamento de comunidades predominantemente negras, o crescimento nas estatísticas prisionais de mulheres negras, as chacinas, bem podem ser lidos como um diagnóstico da insidiosa persistência do racismo e dessa colonialidade abrasileirada da justiça, branca e rica e de réus e rés, pobres e negras.

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O racismo, tão presente em nosso cotidiano, se manifesta de forma mais agressiva no ambiente do Judiciário?

Embora vários estudos tenham identificado um padrão generalizado de vulnerabilidade da população negra: saúde, habitação, mercado de trabalho, direito à terra e acesso aos bens culturais, nenhuma outra área pode ser mais representativa das injustiças raciais no Brasil do que o sistema penitenciário.

As prisões modernas têm o “privilégio” de ser o lugar onde se materializam as estruturas hierárquicas impostas pela lógica racial da desumanização do corpo negro. Aqui o Estado penal–racial não apenas não reconhece as especificidades dos grupos sociais e estas desvantagens acumulativas em negar sistematicamente os direitos, como é um dos principais instrumentos contemporâneos de reprodução de tais padrões de vulnerabilidades.

 Você pode mensurar isso de alguma forma?

Nessa pesquisa foram entrevistadas dez mulheres negras cumprindo pena na penitenciária Feminina de Sant’Ana na capital paulista. Na ocasião, foram observadas semelhanças nas suas trajetórias de vida: elas permaneceram privadas da liberdade antes da sentença condenatória; foram punidas como traficantes apesar de terem sido presas com pouca ou nenhuma quantidade de drogas, o que, em síntese, as caracterizariam como usuárias ou seriam absolvidas; todas são moradoras da periferia de São Paulo; são mães e estudaram até o ensino fundamental incompleto. Me lembro dos encontros com uma das entrevistadas, que foi condenada a 8 anos por tráfico de drogas e a sua fala na frente do juiz, na ocasião da audiência: “se eu fosse traficante não estaria banguela”. A entrevistada é uma mulher negra, sem dentes, homossexual, carroceira,  em situação de rua, usuária de drogas e foi presa com 18 pedras de crack.

A aplicação da lei de drogas encontra descompasso com a leniência jurídica aos jovens de classe média envolvidos em tráfico de drogas e a própria existência física dessa entrevistada banguela, que não parece sugerir um grau de periculosidade ao “corpo social”, ameaçado pela impureza dos “agentes do mal” sugeridos pelo juiz branco na sua sentença.  Uma outra mulher que entrevistei me contou que foi presa com 88 gramas de maconha e recebeu a pena de 05 anos e 10 meses de prisão. Na época da pesquisa uma decisão do Tribunal de Justiça de Goiás chamou minha atenção. O Tribunal concedeu, por unanimidade, Habeas Corpus a dois turistas franceses, presos em flagrante, com aproximadamente 85 gramas de maconha, a mesma quantidade pela qual ela cumpre 05 anos de pena. A sentença para estas mulheres entrevistadas seguiu um padrão de punição racial em que todas são consideradas “traficantes perigosas com personalidades voltadas para o crime”.

Então eu percebo na pesquisa que a política de drogas é mais uma face genocida do estado contra a população preta, pobre e indígena. A polícia aqui é só uma ponta de um sistema de dominação de gênero e de raça em que o Estado penal é o seu principal promotor de letalidades e encarceramento. O Brasil possui hoje uma população prisional de 622.202, e é o segundo país das Américas que mais encarcera jovens negros e mulheres negras. Se pudéssemos traçar uma linha de cor e de gênero nas prisões brasileiras seria possível ver quem realmente está encarcerado em cada cadeia, em cada Febem, em cada casa de acolhimento, em cada penitenciária, em cada centro de detenção. As estatísticas do Departamento Penitenciário de 2014 mostra que 63% das mulheres encarceradas respondem por tráfico de drogas. A guerra às drogas pode ser lida como guerra aos negros e às negras.

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A Iniciativa Negra traz novas propostas para a discussão das polítcas sobre drogas, como você avalia a política de drogas vigente com relação à sua pesquisa e como você vê essas novas propostas?

A Iniciativa Negra por Uma Política Sobre Drogas se faz um instrumento de grande importância para o debate porque se constitui como garantidor de direitos, sobretudo para os jovens pretos das periferias que são as principais vítimas do Estado-penal-racial nessa política racista de drogas. O desafio está lançado e a INNPD que tem um grande trabalho pela frente, pois vai mexer nas estruturas, principalmente do poder judiciário que é branco, conservador, homofóbico, racista, classista. Vai mexer, por exemplo, na estrutura administrativa penitenciária que sobrevive do sofrimento humano nesse complexo industrial da punição.

Discutir tal política sem pautar a questão principal que é o racismo, é manter a hipocrisia histórica dos facistas e de setores da esquerda que silenciam sobre o principio regulador das relações sociais que estrutura a nação que é raça.

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