Nosso trono não será usurpado

Mãe Hilda Jitolu, do Ilê Aiyê (Foto: Mario Cravo Neto/Divulgação Itau Cultural)

Ao redor de bancos simples de madeira ou imponentes cadeiras de vime — tronos de mães de santo, foram estruturadas famílias que ofereceram proteção espiritual e articularam táticas materiais para que nossas ancestrais seguissem vivas. O poder negado pelo Estado às soberanas negras foi reverenciado no Candomblé. Há fotografias belíssimas dos tronos de Mãe Andresa, na Casa das Minas; Mãe Senhora, no Ilê Axé Opo Afonjá; Mãe Beata de Yemanjá, no documentário Fio da memória, de Eduardo Coutinho. Obrigada, Alex Ratts, por compartilhar referências. A cadeira-trono da tal festa é ícone do poder preto desde os Panteras Negras. E é muitíssimo bem empregada em cenas de Elza Soares, Mãe Hilda Jitolu, do Ilê Aiyê, no curta Kbela, de Yasmin Thayná. Como escreveu o antropólogo Hélio Menezes, curador da recente exposição Histórias afro-atlânticas: “O símbolo é forte demais, negro demais, ancestral demais para ser profanado por sinhazinha moderna, socialite-diretora descafeinada de revista de moda.” Assino embaixo.

Por Bianca Santana, da Revista Cult

Demonstrar-se racista é parte de uma estratégia consciente por visibilidade? Ou é tão insuportável conviver com pessoas pretas em posições diversas, que vale encenar, em 2019, uma alegoria do Brasil colônia escravocrata? Deboche da luta antirracista, que, finalmente, não é mais possível ignorar? Reafirmação de quem é quem no país que mantém a mesma estrutura social 130 anos depois da abolição? As perguntas nos servem como tentativa de elaborar o absurdo. Mas pouco importam as respostas. Porque a mim, e imagino que à maior parte da sociedade brasileira, não interessam as intenções de uma mulher branca rica ao organizar seu aniversário de 50 anos de idade. Mas muito interessa a mim, e a quem trava a luta antirracista, que nossos símbolos não sejam usurpados. E que seja considerado inaceitável o elogio a um crime hediondo sem proporções na história da humanidade.

A imagem de mulheres pretas vestidas como mucamas a serviço da sinhá remete a sequestros, aos navios negreiros, aos estupros dos senhores, ao trabalho forçado, à tortura, às humilhações de diversas ordens. Além dos inúmeros estudos da historiografia, há notícias de jornais de época ilustrativos. E há a riqueza de detalhes da literatura. No romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, a personagem Kehinde prefere a brutalidade das plantações e dos capitães do mato à proximidade com a Casa Grande e a crueldade dos brancos, vivenciada por quem era feito escrava doméstico. Sinhá Ana Felipa arrancara os olhos da negra Verenciana por ciúmes do marido. Toda essa carga é atualizada a cada reprodução da imagem da preta servil.

Abro parênteses e peço perdão por retomar o exemplo recorrente. É que quando as vítimas são pessoas brancas, cuja humanidade não precisa ser defendida a todo momento, parece mais fácil a compreensão. Quem julgaria admissível uma festa de aniversário que reproduzisse imagens de campos de concentração? Não é tolerável que se brinque com o holocausto, independentemente das motivações de quem pudesse ter a brilhante ideia de ambientar uma festa reproduzindo imagens de Auschwitz. Assim, é necessário argumentar o óbvio: não é aceitável que cenas da escravização de seres humanos sejam exaltadas, independentemente das intenções de quem teve a brilhante ideia. Neste ponto, me embrulha o estômago lembrar da quantidade de pessoas que toma seu cafezinho apreciando a cena de uma colheita realizada por pessoas escravizadas, no imenso painel que decora um café na galeria do Edifício Copan, cartão-postal de São Paulo.

A ferida da escravidão segue aberta. Porque a estrutura racista da sociedade brasileira permanece e as discriminações racistas não nos dão trégua. Em Kindred, romance de Octavia E. Butler, a personagem Dana desmaia nos Estados Unidos de 1970 e desperta no século 19, no sul do país, em uma fazenda escravista. Se o mesmo acontecesse com alguma de nós no Brasil de 2019, é provável que a paisagem, vestimentas, indumentárias do século 19 fossem outras. Mas pessoas com os mesmos tons de pele e origem social estariam na mendicância, no trabalho braçal, nos cuidados domésticos, nos presídios, mas também nos parlamentos, à frente de grandes negócios, beneficiando-se das estruturas racistas. O tempo passou, mas o Estado brasileiro segue como instrumento das elites brancas para que o poder e a riqueza sigam com os mesmos. E os deslocamentos conquistados com muita luta provocam reações das mais diversas. Até alegorias escravocratas em festas de aniversário. A reação ao absurdo desta imagem é um aviso. Nosso trono de vime não será usurpado. E exigimos assento em outros espaços também.


BIANCA SANTANA é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-Sp, 2015)

 

 

Leia Também:

‘Ela deveria colocar negras na capa da Vogue’, diz Olívia Santana sobre polêmica

Ivete Sangalo, até quando irá se apropriar e fechar os olhos?

Elza Soares sobre festa da diretora da Vogue: “escravizar, nem de brincadeira”

O posicionamento da diretora de marketing da L’Óreal sobre jantar de Donata Meirelles

A cadeira da foto da socialite-sinhá, segundo um antropólogo

+ sobre o tema

Rede europeia contra racismo alerta para aumento de ataques da extrema-direita em Portugal

A Rede Europeia Contra o Racismo alertou esta quinta-feira...

7 frases que devemos parar de falar para acabar com o racismo

No Brasil, o racismo está presente desde o período...

A invisibilidade do racismo, por Lázaro Ramos

Estou muito feliz e orgulhoso por participar dessa...

para lembrar

Reconhecer o racismo é determinante nas condições da saúde da população negra

Há um mês, em Brasília, o Ministério da Saúde...

Deputado sueco renuncia por escândalo de racismo

Um deputado sueco, considerado um forte candidato ao posto...

Retomando O Avesso da Pele

“O Avesso da Pele permite compreender como é ser negro...

A luta antirracista não é uma guerra de negros contra brancos

Como não reproduzir o racismo numa sociedade estruturalmente racista?...
spot_imgspot_img

Se liga, meu irmão

Além de marcar mais uma festa da democracia, as eleições municipais de 2024 deixam claro e evidente que o antirracismo, apesar de previsto na Constituição Federal de...

Mães de vítimas denunciam assassinatos em Conselho da ONU

"Meu filho tinha 16 anos quando foi tirado de casa por 23 policiais militares no estado da Bahia, Brasil, em outubro de 2014", disse...

SP: Condomínio é condenado após mandar homem negro para entrada de serviço

O condomínio de alto padrão Quinta do Golfe Jardins, em São José do Rio Preto (SP), foi condenado a indenizar um homem negro em...
-+=