Estudar as religiões de matriz africana no Brasil e seu universo ritualístico representa um mergulho de quatro séculos da nossa história. Existe uma diversidade ritualística do culto aos orixás entre as diferentes regiões do Brasil, embora toda a tradição provenha da “Mãe África”. Os orixás atravessaram o Oceano Atlântico dentro do coração do negro escravizado, sendo uma das formas de sua resistência cultural.
por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* via Guest Post para o Portal Geledés
Tratados como animais, os escravos eram transportados nos tumbeiros (navios negreiros), nos quais se misturavam negros de diferentes locais da África, falando dialetos diversos. Esta era forma de dificultar a comunicação entre os mesmos, enfraquecer a sua identidade cultural, enquanto grupo étnico, visando a anular, desta forma, uma articulação de insurreição, durante o transporte, ou uma fuga em massa. O tratamento desumano e sofrimento dos escravizados nestas embarcações, conhecidas por navios negreiros ou tumbeiros, foram denunciados no épico poema “Navio negreiro” do Castro Alves (1847-1871). Este clássico de nossa literatura registra a situação dos negros africanos que eram tirados da sua terra e trazidos para o Brasil como escravos. Segue uma estrofe bastante conhecida:
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! “
No Brasil, seus orixás foram sincretizados com os santos católicos, para driblar a cultura dominante branca e cristã, a exemplo de Yemanjá associada à Nossa Senhora dos Navegantes. Este capítulo é do conhecimento da grande parte dos interessados no estudo da cultura africana; porém a questão que se deve estar atento, nesse processo de aculturação, é a forma como tem sido tratado este legado religioso, deixado por nossos ancestrais. Infelizmente, em nosso cotidiano, percebemos de diferentes formas o mercantilismo desrespeitoso e de má fé, que se utiliza do universo magístico desta tradição milenar.
A mistura de diversas Nações de Orixás, oriundas de diferentes regiões da África, torna este resgate histórico bastante difícil, embora o empenho dos pesquisadores, ligados, principalmente, às áreas da História e da Antropologia. O Batuque ou Nação dos Orixás, como é conhecido no Rio Grande do Sul, não possui um livro escrito de cunho sagrado, a exemplo da Bíblia cristã, primeira obra impressa, em 1455, a partir da prensa criada pelo alemão Gutenberg. Na inexistência de um registro escrito, o conhecimento, baseado na tradição oral, constituiu-se num canal de perpetuação das religiões de matriz africana até os dias de hoje, ainda que tenham ocorrido adaptações ao longo do tempo.[1]
Infelizmente, não generalizando, os interesses econômicos invadem os “terreiros” que representam o espaço sacralizado de uma cultura e a sua forma de comunicação com o Divino, transformando o culto aos orixás numa simulação para “Inglês ver”. Diante desse quadro, faz-se urgente uma análise crítica e reflexiva quanto aos reais valores espirituais legados pelos nossos ancestrais, pois estes fazem parte do cadinho, no qual se formou o povo brasileiro marcado pela diversidade cultural de vários brasis.
Kolofé Olorum! (Deus nos abençoe).
Pesquisador e Coordenador do setor de imprensa do Musecom*
Bibliografia:
FERREIRA, Walter Calixto (Borel). Agô-iê, vamos falar de orixás. Porto Alegre: Renascença, 1997.
CORREA, Norton Figueiredo. O Batuque do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1992.
ORO, Ari. Religiões Afro-brasileiras do Rio grande do Sul: Passado e presente. Estudos Afro-Asiáticos vol. 24, nº 02, Rio de Janeiro, 2002.
[1] Infelizmente, com o tempo muitos dos rituais iniciáticos e de formação de novos sacerdotes (aprontamento) foram se adaptando e perdendo algumas características originais.