Uma das situações de racismo que passei e mais me marcou foi perpetrada por um idoso, dentro da sala de aula.
Eu fui convidada para falar sobre saúde mental da população negra numa turma de graduação em Psicologia e, depois de trazer diversos autores reconhecidos por abordarem a negritude, dados estatísticos sobre saúde e violência, cartilhas de orientação de conselho profissional, linhas e mais linhas de referência, exemplos da imprensa, exemplos vivenciais, explicar o racismo estrutural, a potencial reprodução de racismo por qualquer um numa sociedade racista etc., um idoso pediu a palavra e disse assim, em tom ingênuo/jocoso:
“-Mestra Thaíse, eu procurei seus trabalhos no Google, achei um artigo e, assim como o seu trabalho e dos seus colegas (coautores), assim como outros trabalhos desse tema, tudo me parece superficial e não concordo que todo branco seja racista. Eu, por exemplo, tenho um motorista negro na família com quem me dou muito bem e também dou conversa para o frentista do posto, o qual é um desses imigrantes aí. Homem inteligente, fala várias línguas, dou conversa, ouço suas histórias quando abasteço meu carro. Assim, não posso conceber que todo branco seja racista.”
Respirei fundo e, a partir dali, sabia que eu ia sair do lugar de convidada a falar sobre racismo para o lugar da “negra agressiva” – ainda que minha resposta fosse polida – e que nunca mais eu seria convidada para aquele espaço. Como eu já sabia que eu não tinha nada a perder, respondi:
“-*Fulano de Tal, existem três tipos de pessoas: as que merecem uma explicação, as que merecem uma resposta e as que não merecem nada. Eu te darei uma explicação em respeito aos teus colegas, mas, depois de tudo o que eu disse, tu não mereces nada.”
E comecei a falar (DE NOVO) sobre racismo estrutural. E orientei que o sujeito fosse estudar mais antes de tecer críticas flácidas.
Bom, diante da minha resposta dura para introduzir minha explicação e repetir TUDO DE NOVO de forma resumida porque o sujeito branco não me escutou (só para variar… a branquitude, afinal, dá ouvidos só ao que lhe convém), recebi muitas mensagens de apoio dos colegas, mas uma moça branca não gostou do meu “tom” e me xingou, falou do quanto eu fui “arrogante” com o colega “idoso”, me acusou de “falta de empatia” etc. Falou que temos que ter paciência com pessoas idosas, que precisamos compreender que as pessoas foram criadas noutro tempo, que eram racistas e tinham dificuldade de abrir mão disso, mas, tínhamos que ter paciência etc.
Eu escutei e respondi que era impossível não ser dura, depois de ter dado uma aula sobre racismo estrutural, e ter de ouvir que os estudos sobre racismo eram superficiais e que a justificativa para pensar assim eram as relações “cordiais” de SUBALTERNIDADE que o sujeito branco estabelecia com seus criados negros, que o racismo não “existia” porque ele “dava conversa” para o motorista e para o frentista – o qual, aliás, era um poliglota ocupando uma profissão digna, mas sem prestígio social e não à altura da sua qualificação, porque era um negro imigrante. Que ela, como branca, enxergava a fragilidade na velhice do colega branco, mas, a agredida e machucada ali era EU e que com as minhas feridas ela não conseguia empatizar.
Ela ficou muito desconcertada (não pela minha resposta, porém, pela enxurrada de mensagens dos colegas, criticando sua postura). Mas, evidentemente, não me pediu desculpas sinceras.
Esse fato foi muito traumatizante para mim. Passei o resto da semana com uma enorme enxaqueca, sentia uma dor profunda e não conseguia chorar… e, quando consegui, chorei muito, senti uma intensa tristeza – não pela agressão que sofri em si, mas, sobre o quanto ainda doi ter de me defender desse tipo de violência nos espaços, sobretudo aqueles que parecem seguros (mas, não são, não há territórios seguros para corpos negros).
Falei sobre o fato com minha rede de apoio, na psicoterapia. Mas, não consegui contar para muitas pessoas, sobretudo para quem aquilo precisava ser contado. Fiquei muito dolorida. Mas, o que aconteceu me levou a pensar sobre a condescendência que se tem com o idoso racista. E hoje, com as feridas mais cicatrizadas, compartilho essa vivência e interpreto os seus significados.
A moça que defendeu o colega idoso era mulher. Se um idoso tivesse me feito uma agressão machista, ou se tivesse me assediado sexualmente, será que ela se sentiria solidária comigo? Talvez sim.
Mas, como a violência era racial, não.
Eu tinha que “entender”, ter “empatia”. E dizer, dizer, dizer, repetir… ou então engolir a seco o golpe, para não “machucar” o idoso.
Eu sei bem donde isso vem… As netas dos racistas amam os seus avôs. Elas sabem que o racismo é “errado”, mas, não entendem como uma violência, porque os seus entres queridos são “pessoas boas”. Usam a moratória social do tempo, da história, para justificar o racismo dos vovôs amados. E nós, corpos negros, devemos ocupar nosso papel de SUPORTAR a chibatada, porque a gente aguenta… aguentamos até aqui, não? Que custa seguir aguentando? A senilidade é justificativa para o racismo. Idosos são velhos demais para mudar e compreender o que é o racismo.
O corpo branco velho desperta compaixão, benevolência, cuidado. É o corpo do “bom velhinho”, fofinho, frágil, macio, alvo…
Mas, é só dar uma olhada no Google para ver essa “velhice albugínea açucarada” entrar pelo ralo: idoso de 66 anos mata, por racismo, homem de 62; idosa é acusada de racismo por evitar ser vacinada por enfermeiro negro; idosa de 75 anos é condenado por insultar, aos berros, 3 pessoas negras em shopping; idosa insulta idoso negro de 70 anos, o qual explicava o seu trabalho para os filhos (negrada do inferno!); idosa é condenada por injúria racial contra menino de 9 anos… e por aí vai.
Os racistas têm direito de serem respeitados na velhice. Pessoas como eu, não, em nenhuma fase da vida. O nosso corpo nunca desperta, desde a tenra infância até a velhice, compaixão, respeito e empatia.
Quando eu era criança, eu tinha o diabo no corpo. Quando eu cresci, eu tenho “barraqueira e agressiva” no corpo, eu tenho a negra forte que suporta tudo no corpo. E quando eu envelhecer (se é que chegarei lá, porque pessoas negras tem mais chances de não envelhecer e sucumbir antes), terei a negra tosca e o estorvo no corpo. Ou seja, eu sempre serei um corpo digno de desprezo, de ódio. Um corpo que justifica a violência.
Bom, novembro Negro está aí… e eu estou aqui para te lembrar que os canalhas também envelhecem.
Referencias
Thaíse Mendes Farias
Psicóloga Clínica, CRP RS 07/28216, Bacharel em Psicologia (UCPel) e Direito (UFPel), Especialista em Direito do Estado (UFRGS), Mestre em Ciência Política (UFPel), Especialista em Psicologia e Sexualidade (Universidade de Araraquara), Doutoranda em Psicologia Clínica (Unisinos), Pesquisadora das microagressões raciais e e habilidades multiculturais pelo Laboratório de Estudos em Psicoterapia e Psicopatologia – LAEPSI, Coordenadora do Núcleo de Processos Clínicos e Psicossociais da Subsede Sul do Conselho Regional de Psicologia do RS
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