O negro errado por Sueli Carneiro

Somos, geralmente, um único ponto preto numa turma de formandos de ensino superior. Uma vitória que encerra, em cada caso, o resgate de gerações de seres humanos humilhados, condenados ao exercício de tarefas socialmente consideradas degradantes: cozinhar, lavar, passar, limpar a sujeira da casa grande. Capinar de sol a sol em troca da bóia-fria. Alguém escapa ao controle, vence o abandono social, as humilhações cotidianas, a profecia auto-realizadora do fracasso inevitável e, enfim, alcança o sonhado diploma, o suposto passaporte para a inclusão e mobilidade social.

Por Sueli Carneiro

Porém, o mesmo Estado do abandono encarrega-se de executar os sonhos. Negro morre na praia. Morre de morte matada pelas mãos do mesmo Estado que trata como uma condenação a priori o nascer negro. Assim se deu com Flávio Ferreira Santana, o jovem dentista negro recém-formado que recusou, que ironia, o pedido de sua ex-noiva para ir trabalhar nos EUA, por medo de ser lá discriminado por ser negro e brasileiro.

Homem negro suspeito de assalto é morto. Um engano. Afinal negros são todos iguais, sobretudo no escuro! Mas o engano tem que ser corrigido. É fácil, reconstrói-se o estereótipo incrustado no imaginário social: elemento negro, armado, resiste à prisão, policiais se defendem e ele é morto. Em seu bolso foi encontrado a carteira da vítima do assalto que acabava de realizar. Missão cumprida.

O que deu errado dessa vez? Ele era dentista, tinha um pai militar que conhecia suficientemente o caráter de seu filho e a prática de sua corporação para não acreditar na versão oficial da polícia sobre o ocorrido: resistência seguida de morte e uma testemunha que se recusou a ser cúmplice de uma execução sumária correndo o risco de tornar-se ela mesma outro caso. Eles não costumam perdoar.
Em editorial sobre esse assunto intitulado ”Racismo policial”, a Folha de São Paulo assinala: ”Dessa vez eles pegaram o negro errado”. É verdade, porque isso ocorre todos os dias, com total impunidade e indiferença da sociedade, nas periferias das cidades brasileiras onde os ”negros certos”, pobres, favelados, estão submetidos, segundo o antropólogo Luis Eduardo Soares, ao estereótipo criado pela polícia sobre eles: ”O morto jovem é sempre um traficante em confronto com a polícia. O ‘kit assassino’ está sempre pronto para colocar na vítima uma arma e um pouco de droga para reproduzir sempre a mesma história”.

Mais desoladoras são as reações das autoridades diante do caso, ao qualificá-lo como um engano ou um caso deplorável. Nenhum, nem outro. É simplesmente resultado de uma cultura policial de viés lombrosiano, assentada no princípio do mata primeiro e pergunta depois, uma permissão para matar decorrente da impunidade em relação à violência aos direitos humanos elementares de pessoas às quais não se reconhecem nem direitos nem plena humanidade. Daí por que a negros não se aplicam alguns dos princípios elementares de direitos humanos: o de não ser preso ou detido arbitrariamente e o da presunção de inocência. Desarmado, sem resistir à abordagem policial, Flávio Ferreira Santana é primeiro assassinado fisicamente e depois tenta-se assassiná-lo moralmente. Um quadro recorrente que exige das autoridades menos palavras de consternação e promessas de punição. Mas, sim, mais decisão. Vontade política para desenhar e implementar políticas públicas que enfrentem a necessária revisão, reciclagem da formação policial, das práticas, métodos e ideologias que informam a ação policial e contaminam o olhar dos órgão de repressão sobre uma população que é tratada a partir do paradigma do vigiar e punir, jamais de proteger direitos. É esse olhar, do qual está impregnada toda a sociedade em relação ao negro, que permite a expulsão de quilombolas de uma pensão de Brasília por sua proprietária sob o argumento de que eles iriam ”sujar os lençóis”.

É esse olhar que torna irrelevante os incontáveis corpos negros que habitam os IMLs do país que, como quase ocorre com Flávio, acabam sendo enterrados como indigentes. Porém a diferença crucial entre o olhar de uma dona de pensão racista e um policial militar racista em ação nas ruas é a chance de viver ou morrer. Os dados informam que, ”em 1980, a taxa nacional de homicídios entre jovens era de 17,2 por 100 mil habitantes; em 90, saltou para 38,8; e, em 99, para 48,5. Apenas dois países matam mais jovens que o Brasil: Colômbia e Porto Rico. Os EUA, que não são exatamente um país pacífico, têm índice de 14,6. Os números brasileiros são comparáveis aos de países em guerra. Flávio certamente desconhecia essas estatísticas, senão teria corrido o risco de ser discriminado nos EUA. Teria mais chances de sobreviver.

Vive-se num país em que, mais que outros, a cor da pele significa risco de morte. Em que a possibilidade de sofrer uma modalidade fatal de violência se constitui dimensão natural da vulnerabilidade social do ser negro. Em que a essa realidade cruel o poder público responde apenas com gestos simbólicos de solidariedade e retórica consternada.

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