Ódio racial por Sueli Carneiro

O ódio racial emerge como tema de maneira insólita por intermédio dos saudosistas do mito da democracia racial. É o que manifesta o editorial do jornal O Globo de 30/12, intitulado ‘‘Risco racial”, no qual é combatida a proposta do governo de adoção de políticas de cotas para negros nas universidades brasileiras. Assumindo a posição de um dos últimos baluarte da velha democracia racial, o jornal insiste em negar as evidências de discriminação racial brilhantemente descritas, em diversos momentos, por uma de suas mais respeitadas e competentes colunistas, que é Míriam Leitão.

Por Sueli Carneiro

Diz o editorial: ‘‘O governo federal deverá, em breve, criar um sistema de cotas para negros nas universidades públicas. Com isso, o assunto voltará com força ao debate. Esse tipo de ação afirmativa já vem sendo discutido, motivado por legislação semelhante aprovada no Rio de Janeiro para disciplinar a entrada de negros na universidade estadual. E pelo que já se sabe, aconselha-se cuidado ao Executivo federal”.

Não sei se o aconselhamento do jornal ao Executivo federal deve ser entendido como excesso de zelo, advertência ou ameaça. Vindo de onde vem, é bom ‘‘colocar as barbas de molho”, pois não se trata de amadores. Cabe cismar. Cuidado negrada, pode estar vindo chumbo grosso por aí.

O argumento fundamental utilizado contra as cotas é: ‘‘O sistema de cotas é uma importação dos Estados Unidos. O que não quer dizer nada, pois boas idéias devem ser imitadas. O problema é que como a história do negro nos EUA é diferente da nossa, há o risco de se importar tensões raciais específicas dos americanos. Nesse sentido, é preocupante a informação de que na UERJ já existe conflito entre ‘cotistas’ e ‘não-cotistas’. É inevitável que ao criar uma reserva automática para algum segmento da sociedade, sem base em qualquer outro critério além da cor, se esteja semeando problemas”.
Em resposta a esses argumentos, o militante negro Giovanni Harvey afirma em seu artigo ‘‘A falácia irresponsável do ódio racial”: ‘‘Enquanto os negros brasileiros ‘souberam o seu lugar’ não houve, sob o ponto de vista do O Globo, ‘risco de ódio racial’ no Brasil. Durante mais de um século de proscrição, repressão, discriminação, preconceito e exclusão não houve, sob o ponto de vista do O Globo, ‘risco de ódio racial’ no Brasil. Enquanto o acesso aos bens de consumo mais valorizados pela nossa sociedade (inclusive a educação superior) foi um privilégio quase que hegemônico dos brancos não houve, sob o ponto de vista do O Globo, ‘risco de ódio racial’ no Brasil. De uma hora para outra O Globo, através de artigos e editoriais terroristas, tenta contaminar a sociedade brasileira com um tipo novo de ‘histeria coletiva’: o medo do ‘ódio racial’ que estaria sendo fomentado pelas pessoas e organizações que se propõem a eliminar as desigualdades étnicas e sociais no país. Sob a ótica do O Globo, os negros, particularmente os grupos mais organizados, são apontados como os responsáveis pela importação de uma tensão social que, segundo o editorialista do O Globo, não existiria no Brasil. O jornal O Globo caminha a passos largos para se transformar em um panfleto de apologia ao ‘ódio racial’ dos brancos contra os negros. Não há registro de ações semelhantes de negros contra brancos na história do Brasil”.

Curiosamente, essa nova investida do jornal contra as cotas ocorre num momento em que pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a Fundação Rosa de Luxemburgo, da Alemanha, suficientemente divulgada na imprensa brasileira, revelou que a maioria dos brasileiros, 56%, são atualmente favoráveis às políticas de cotas para negros, numa clara evidência da mudança significativa de nossa consciência coletiva sobre as nossas relações raciais, o crescente reconhecimento social dos processos de exclusão produzidos pelo racismo e a discriminação racial e a aceitação da necessidade de utilização de instrumentos efetivos para a reversão das desigualdades raciais historicamente produzidas. Na contramão da maioria da opinião pública, assume O Globo um militantismo anticotas provavelmente destinado a reverter essa tendência favorável à adoção de medidas de inclusão dos negros no nível universitário.

Escudando-se nos velhos modelos de abordagem das relações raciais, o jornal conclui o editorial reiterando a posição de tratar as cotas como ‘‘risco de incentivar conflitos e tensões que nada têm a ver com as tradições brasileiras”. Tradições essas suficientemente descritas por Harvey, dentre as quais some-se ainda a negação sistemática de uma problemática social como forma de produção de ‘‘verdades” convenientes com que se aplacam as consciências e se impedem e/ou postergam mudanças.

Jurema Werneck, ativista do movimento de mulheres negras brasileiro, tem um belo artigo intitulado ‘‘A era da inocência acabou, já foi tarde”, no qual afirma: ‘‘Acusamos essa inocência de, mais que ser cúmplice do passado, ser auxiliar poderosa da criação cotidiana de novos mecanismos de submissão, de aniquilamento de um povo e sua cultura… Fugindo da dor, criamos mais dor – a começar pela dor do outro… O principal é dizer que o tempo da inocência já passou. Aquilo que não se via ou não se dizia ou se fingia não ver/dizer está dito: racismo. É hora de passar adiante”.

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