“O racismo elege, a partir dos corpos, quem morre e quem vive”, diz Naira Gomes

Os dois recentes casos de violência de grande repercussão contra vítimas negras em Salvador, ocorridos no início deste ano, fundamentaram a proposta da Marcha do Empoderamento Crespo para a realização de um ciclo formativo antirracista para agentes de guarda e policiais. As ocorrências, contra duas irmãs gêmeas e um adolescente, tiveram como ponto comum o ataque relacionado à estética capilar e características do fenótipo negro. O tema foi discutido por Naira Gomes, uma das fundadoras da entidade de mulheres negras que tem como uma das pautas a luta contra o racismo pelo viés estético, na manhã desta segunda-feira, 10, durante o programa ‘Isso é Bahia’, na Rádio A TARDE FM.

Por Shagaly Ferreira, da A TARDE

Foto: Rafael Martins

Para Naira, os episódios demonstram como as práticas racistas estão atreladas à estética, de forma a determinar, inclusive, as condições de vida e de morte para os negros na sociedade. “O racismo elege, a partir dos corpos, quem morre e quem vive. Para o racismo, a estética negra é feiura, sujeira, incapacidade, marginalidade. O episódio nos mostrou muito bem que, ao ver o menino com o cabelo crespo, alto, descolorido – um menino muito magro e doce, que não tem uma imagem que amedronta pelo tamanho – alguém pensa que ele é marginal e não é trabalhador. É porque a estética chega antes e mata antes de a gente falar qualquer palavra”.

Diante deste cenário, a Marcha, que completa seis anos em julho e já atuou em mais de 200 formações políticas, estará à frente da série de atividades formativas voltadas para os profissionais da Polícia Militar da Bahia e da concessionária CCR Metrô. A iniciativa inédita, considerada um grande avanço por Naira, atuará na requalificação dos agentes já em exercício e formará as novas turmas que iniciarão seus trabalhos no metrô. Para os policiais, haverá palestras itinerantes nas bases comunitárias nos bairros, com início na região de Coutos, que abrange Paripe (onde foi registrada a ocorrência com o adolescente). A medida vai resultar em uma matéria fixa no curso de formação de soldados da Polícia Militar futuramente.

“Vamos falar de temas imprescindíveis para que a gente consiga viver com dignidade e para que o racismo não mate as pessoas negras. Não só a morte física. A morte simbólica, cotidiana, autoriza a física. A gente vive uma vida inteira de negação de direitos e de dignidade. Custa muito pouco matar uma pessoa negra porque ela já está destituída de humanidade. Esse é o principal artifício do racismo. É um processo cotidiano que culmina na morte física”, explicou a ativista.

Estética crespa

Representante da comissão da Marcha, formada por oito mulheres negras, Naira Gomes aponta que não é possível descartar a discussão sobre estética no Brasil diante da importância que ela tem em diversos aspectos na vida profissional e pessoal do povo negro, uma vez que se apresenta como fator determinante de autoestima e de vida construída na coletividade. O cabelo crespo se apresenta como um ícone que estigmatiza os negros e que é ressignificado pelo movimento, do qual vem o nome da Marcha.

“É marcha porque é luta contínua, é empoderamento porque a gente concebe que o que mais empodera é a coletividade, o conhecimento e o afeto, e é crespo porque o que mais estigmatiza é o crespo. O cabelo aparece para nós no contrafluxo do racismo como algo fundamental de identidade positiva. A gente aprende a se pensar com o racismo. A gente pensa feiura, pensa autoestima a partir dessa premissa. O que a Marcha faz é desconstruir, com muitos instrumentos – e um deles é o afeto e a empatia – o que a gente construiu contra nós mesmos”, explicou.

Com atividades contínuas ao longo do ano, a Marcha do Empoderamento Crespo atua de forma mais enfática nas escolas dentro e fora da Bahia. Para Naira, é neste espaço que tal atuação pode ser mais eficaz para que o jovem se encontre com sua estética e estima. “A gente entende que é nesse momento em que o jovem negro está descobrindo que é negro e como é ser negro. Em setembro, quando vamos às escolas tratar de ‘Setembro Amarelo’, eles falam como se cortam para que a dor física doa mais do que a dor simbólica: a da baixa estima. Então, a escola é um lugar fundamental para fazer a formação com aqueles jovens, que estão iniciando a vida”, pontuou Naira.

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