Bruna ainda guarda o uniforme escolar que seu filho, Marcos Vinicius, usava quando foi morto, aos 14 anos, por disparo de fuzil durante uma operação da Polícia Civil e do Exército no Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, em 2018. Seu luto é uma dor que atravessa as mais de 800 favelas do Rio, ecoando em milhares de outras mães que, como ela, têm seus filhos mortos pela ação do Estado.
Marcos era um adolescente negro; pessoas negras têm sete vezes mais risco de serem mortas por um agente de Estado. Em 2024, 699 pessoas morreram por intervenção policial no Rio, a maioria negra. A Maré, um dos maiores complexos de favelas do Rio, abriga cerca de 140 mil pessoas e tem uma realidade ainda mais cruel. De acordo com a Redes da Maré, a taxa de homicídios por intervenção policial é de 16 mortes a cada 100 mil habitantes, enquanto a média estadual é de 4,3 e a nacional de 2,9.
Esses dados foram apresentados ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra (Suíça), na sexta-feira (28), por um jovem da Maré, que, em 2019, escreveu uma das mais de 1.500 cartas enviadas por crianças e adolescentes à Justiça descrevendo o horror da vida sob fogo cruzado.
Em julgamento no Supremo Tribunal Federal, a arguição de descumprimento de preceito fundamental 635, a ADPF das Favelas, é uma ação protocolada em 2019 que visa garantir que as operações policiais respeitem os direitos constitucionais de moradores de favelas. Desde sua implementação parcial, a letalidade policial no Rio caiu 61,5%.
Um marco dessa ação foi a reação à morte de João Pedro, 14, no Complexo do Salgueiro, em uma ação policial na pandemia. João morreu enquanto brincava em casa. As medidas adotadas pelo tribunal evitaram novas mortes como a dele, mas não todas.
Ao contrário da desinformação propagada, a ADPF não impede operações policiais. De julho de 2020 a janeiro de 2025, o Rio realizou cerca de 4.600 operações, uma média de 3 por dia. A população da Maré foi impactada por 42 delas em 2024. Em apenas 5 havia a presença de ambulâncias e, em 9, o uso de câmeras corporais. Em 88% das operações, veículos blindados transitaram no entorno de escolas e mais de 7.300 estudantes foram afetados, com 37 dias de aulas perdidas. Foram ao menos 30 dias sem atendimento médico e 8.715 consultas canceladas.
Esta Folha, no editorial “Normas para ações policiais exige sensatez do Rio e do STF” (26/3), afirmou que “grande parte do que está em exame são regras civilizatórias básicas que deveriam reger qualquer atuação policial complexa, como a presença de equipes de saúde e o respeito à lei no caso de busca domiciliar, bem como limites ao uso de helicóptero como plataforma de tiro em regiões populosas”.
É assustador que o governo do Rio se empenhe em rechaçar a adoção destes e de outros critérios estabelecidos pela ação como o uso de câmeras corporais, a criação de planos de redução da letalidade policial, investigações independentes sobre mortes causadas pelo Estado e a implementação de protocolos para o uso progressivo da força. Deve-se ressaltar que a ADPF se desenvolveu graças à participação de movimentos sociais de territórios de favela que, atuando como “amici curiae”, ofereceram dados e documentação de violações.
O ministro Edson Fachin, relator da ação, propôs em seu voto a criação de um comitê de acompanhamento, com entidades da sociedade civil e órgãos públicos. A participação efetiva da sociedade civil do território no monitoramento da decisão é fundamental para garantir sua efetividade.
O voto de Fachin ressalta que a ADPF “é uma oportunidade de reconhecimento de uma injusta discriminação histórica”, reforçando a necessidade de “se combater o crime sem cometer crimes”. O Supremo tem nas mãos a oportunidade de fazer o Estado de Direito subir o morro.
Camila Asano – Cientista política e diretora-executiva da Conectas Direitos Humanos
Gabriel Sampaio – Jurista e diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos