Os campos e a cor: Um caso de racismo por semana no futebol brasileiro em 2017

Enquanto a bola rola nos gramados nacionais, um monstro ruge e faz vítimas nas arquibancadas físicas e virtuais. Segundo o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, de janeiro a abril deste ano, foram recebidas mais de 30 denúncias. Marcelo Carvalho, criador e diretor executivo do canal que realiza o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, afirma que este é um recorde em um início de temporada desde 2014, quando a entidade foi criada.

Foto: iStock.com

por Eliana Alves Cruz via Guest Post

​- Ainda estou processando os números de 2017, mas já temos um recorde para os quatro primeiros meses do ano – disse Marcelo.

O observatório busca apoio para a publicação do relatório de 2016. Talvez devido ao domínio da cena pelos Jogos Olímpicos no Brasil, seus números apontam um decréscimo nas denúncias dos casos em relação a 2015. Este ano, nas estatísticas computadas pela organização até abril, enquanto a bola desliza pelos gramados, a intolerância voltou com força total. Foram 30 casos relatados em 2017 contra 20 em todo o ano de 2016, 37 em 2015 e 20 em 2014.

Os relatórios mapeiam os casos ocorridos com brasileiros dentro e fora do território nacional, com a descrição de cada um e seus desfechos. Enganam-se os que pensam que as vítimas são apenas os que defendem e atacam dentro dos gramados em busca de evitar ou fazer um gol. Além dos atletas, a “besta-fera do racismo” atinge treinadores, funcionários de estádios e torcedores. Segundo Marcelo, um reflexo das tensões raciais mal resolvidas de toda a sociedade. Para além da questão racial, a entidade já coleta informações também sobre homofobia, xenofobia e machismo no futebol e em outras modalidades esportivas.

O número de casos relatados é potencializado pela enorme mídia que o futebol tem no país. A repercussão e a forma como são veiculados dizem muito sobre a forma como o negro é retratado nos grandes meios. Black Sport Club conversou com Marcelo sobre este tema espinhoso e com urgência em ser abordado com objetividade, pois a “fera” parece gritar sem emitir som, visto que embora ela se apresente assustadora e mortal, na opinião dos que estudam o tema como Marcelo Carvalho, o noticiário passa ao largo das questões mais profundas, ficando na superfície das denúncias, sem mostrar soluções, acompanhar seus desdobramentos e atuar como agente de promoção das campanhas preventivas.

Qual a sua formação e como surgiu a ideia do Observatório?

Sou graduado em Administração de Empresas, com MBA em Gestão Empresarial. A ideia do Observatório surgiu em 2014, após os casos de racismo em sequência com o Márcio Chagas, Arouca e Tinga. Fiquei incomodado em não encontrar um histórico das punições para os casos de racismo no futebol, então resolvi criar um canal que pudesse monitorar e acompanhar os incidentes de discriminação racial.

Como enxerga a questão do racismo no futebol atualmente?

No meu entender a questão do racismo tanto dentro como fora das “quatro linhas” é encarada da mesma forma pela sociedade e autoridades. Pouco se importam com o racismo nada velado ao qual nós negros somos submetidos diariamente. A mesma sociedade que nada faz para combater o racismo tem seu reflexo nos clubes, instituições e federações (incluindo CBF) que pouco ou nada fazem de forma efetiva para combatê-lo. Conforme levantamento do Observatório, em 2017 temos um crescimento absurdo das denúncias de atos discriminatórios e é o mesmo ódio que podemos notar nas redes sociais e na sociedade.

Com o advento das redes sociais, vemos a sociedade tornar visível sua face excludente e agressiva.  Quais caminhos você aponta para a conscientização e solução?

O primeiro e principal caminho seria uma grande campanha sendo realizada pelas instituições (vide exemplo do que aconteceu no Peru (Clique aqui). Não podemos continuar com ações pontuais e isoladas. Precisamos unir forças e dar início a uma grande campanha envolvendo todos os atores do meio esportivo. Precisamos debater o assunto e tornar público a quantidade de casos, seus desdobramentos e punições.

Vemos que algumas torcidas já estão abolindo palavras de ordem que ofendam negros e homossexuais. Quais avanços concretos você apontaria?

Esse movimento de discussão e ações vem sendo realizado na “borda” dos clubes, eles nascem de fora para dentro, mas para que sejam efetivos precisam do envolvimento dos clubes e, principalmente, dos atletas. Os debates e campanhas de conscientização serão capazes de produzir um novo sentimento nos torcedores que acreditavam (e acreditam) que no futebol, nos estádios, tudo é permitido, quase como se o futebol fosse um mundo à parte.

As entidades esportivas nacionais e internacionais, em sua maioria, se esquivam em tratar o tema com mais objetividade e rigor. Em sua opinião, a que se deve isso e quais as formas para trazê-las com mais intensidade para o debate?

O  principal motivo que identifico na não participação dos que conduzem o futebol e que de fato podem punir é o corporativismo. As instituições não querem punir seus “afilhados”. Não querem conflito com os que votam para que eles se perpetuem no poder. É absurdo ver a CBF ir até a CONMEBOL solicitar que esta a defenda na FIFA da acusação dos gritos homofóbicos, dizendo que estes são culturais no Brasil. O que sinaliza que a principal entidade do futebol brasileiro pouco (ou nada) vai fazer para combater os gritos que se espalham pelos estádios brasileiros. E que não são nada culturais.

A CBF tem em caixa mais dinheiro que todos os 20 maiores clubes do futebol brasileiro juntos. Ela poderia financiar uma campanha e espalhar o debate sobre preconceito e discriminação no futebol, mas ela acredita que a pífia ação “Somos Iguais” é suficiente. Mas não é! Visto que os casos continuam a acontecer.

Em sua opinião, qual o papel do futebol na sociedade brasileira?

O futebol é um reflexo da nossa sociedade. O mesmo futebol que abriu as portas para negros (mesmo que esta passagem não significasse o fim do racimo, afinal a entrada de negros no futebol se deu pela questão econômica), possibilitou a ascensão social e econômica de milhares de pessoas. O futebol por ser o esporte mais popular no Brasil tem nos atletas o exemplo de conduta e comportamento para muitas crianças, sendo assim, ele precisa ser utilizado como um instrumento de luta contra a violência e a discriminação racial. O futebol já foi utilizado por diversos governos do Brasil e do exterior como forma de manipulação e de angariar votos, chegou a hora de usar para uma boa causa.

Qual a sua análise sobre o tratamento que a imprensa dá ao tema?

A imprensa trata o tema de modo superficial, mais preocupada em chamar atenção do consumidor para a notícia, na venda. Hoje percebemos que os veículos de comunicação dão mais importância para as denúncias, tornando-as públicas. Ouve atletas e autoridades, mas a mídia poderia fazer mais. Poderia fazer parte das campanhas e participar dos eventos que acontecem na borda do futebol e que discutem racismo, machismo, violência e homofobia, não só participando para cobrir estes eventos. A mídia precisa tornar público para a sociedade que estas chagas estão sendo discutidas com seriedade.

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