Os heróis sempre foram brancos e homens, diz 1ª negra patrona de festejos da Guerra dos Farrapos no RS

Narrativas do conflito travado entre 1835 e 1845 até hoje ignoram protagonismo de combatentes negros

Liliana Cardoso, hoje com 44, tinha 7 anos quando declamou versos típicos da cultura gaúcha pela primeira vez e entrou no meio tradicionalista. Aos 9, competiu no primeiro rodeio.

A menina, de uma família de cinco filhos que vivia na Cohab Costa e Silva, em Porto Alegre, descobriu essa cultura frequentando o CTG (Centro de Tradições Gaúchas) que os pais ajudaram a construir no bairro.

Trinta e sete anos depois, mãe de dois filhos e avó, casada com Solon Duarte, a declamadora, apresentadora e ativista cultural se tornou a primeira mulher negra patrona dos festejos farroupilhas do Rio Grande do Sul, eleita por um grupo que inclui representantes do governo estadual e da sociedade civil.

Os festejos farroupilhas marcam as comemorações em referência ao 20 de Setembro, data que lembra a Guerra dos Farrapos (1835-1845), conflito que se arrastou por uma década entre rebeldes e o Império, desencadeado pela insatisfação com os impostos cobrados sobre os produtos produzidos no estado.

Com vários títulos, apesar de ter crescido dentro de CTGs, entre concursos e estudos, Liliana reconhece que a presença de pessoas negras como ela costuma ser minoritária nos salões e eventos.

“Acho que se deve à própria construção histórica que vem desde a Revolução Farroupilha de não legitimar o protagonismo do negro à frente da revolução, da representação da força dos Lanceiros Negros que foram brutalmente traídos, que não tem nomes, nem registros, nem estátuas na história. Os heróis sempre foram brancos e homens”, avalia ela. “Talvez [os negros] não se sintam pertencentes [àquele espaço]”.

Para marcar o seu mandato como patrona, Liliana quis colocar a presença negra no meio tradicionalista como pauta e organizou um livro reunindo artigos em torno da questão, “A matriz da cultura negra no gauchismo” (Pragmatha, 2021), que será lançado nesta segunda (20).

Os textos abordam discussões que vão desde a ausência de bibliografia sobre o negro rio-grandense nos concursos de prendas –que avaliam conhecimentos sobre a história do estado e também pratos e trabalhos manuais das candidatas–, os expoentes da negritude no tradicionalismo e no nativismo e a presença negra na literatura gaúcha, até o simbolismo das bonecas abayomi.

Os Lanceiros Negros, citados por Liliana, foram homens negros escravizados que lutaram como soldados do lado farroupilha pela promessa de liberdade quando o conflito chegasse ao fim —a abolição da escravidão no Brasil só aconteceria 43 anos depois, em 1888.

Pelo menos cem deles foram mortos no episódio conhecido como Massacre de Porongos, em 1844, quando foram pegos em uma emboscada, pelo exército imperial, no Cerro dos Porongos, atual município de Pinheiro Machado, no sul do estado. Aqueles que não foram mortos foram enviados ao Rio de Janeiro e seguiram escravizados.

“Alguns dizem que eles foram traídos, desarmados, outros que não foram. Eu sou uma voz que retumba, mas precisamos de mais vozes. Outro dia eu fiz uma live com prendas e peões do Rio Grande do Sul e os jovens do movimento tradicionalista estão focados em reparar e reconhecer os Lanceiros Negros e a própria história do negro no movimento gaúcho. Falo de jovens de 13, 14, 15 anos”, diz Liliana.

O presidente do MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho), Manoelito Savaris, diz que não tem convicção sobre ter havido traição e que aguarda provas mais contundentes a respeito. Ele afirma que os Lanceiros sempre foram lembrados na história e sempre houve polêmica em torno deles, mas ressalta que David Canabarro, que teria sido responsável pela traição, não defendia a libertação dos escravos, assim como a maioria do pensamento da época.

“Todos os comandantes farroupilhas, tanto quanto os comandantes imperiais, tinham escravos. Alguns deles com o passar do tempo foram libertando seus escravos, mas a existência da escravidão no Brasil era um problema que não dizia respeito nem somente ao RS, nem somente aos farroupilhas. Era um problema do Brasil”, diz.

“Para mim, a importância da patrona deste ano tem tanto valor quanto às patronas anteriores, ela é a quarta mulher patrona. Não tem nenhuma diferença, branca, negra, índia. O fato é que se ela foi escolhida é porque ela tem valor, destaque, contribuição importante, é uma pessoa direita”, avalia ele sobre Liliana.

Quando ela tinha cerca de sete anos começou a competir nos concursos de declamação, mas não ganhou nenhum título na categoria mirim. Liliana conta que o pai, José Luiz Rodrigues dos Santos, começou a questionar então o que faltava para a menina que tinha boa voz e boa dicção. A resposta: técnica.

Ele passou então a estudar junto com ela e prepará-la para se tornar uma das mais reconhecidas declamadoras do estado. A afinação entre os dois resultou em livros e num projeto batizado “A arte de declamar”, com oficinas e palestras que já foram apresentadas em outros estados.

Servidores públicos, os pais não tinham ligação com o tradicionalismo até ajudarem na construção do CTG Coxilha Aberta, conta Liliana, onde os cinco filhos faziam atividades quando estavam fora do horário de escola, mas se tornaram os maiores apoiadores do sonho dela de seguir como declamadora.

“Eu sempre digo que cheguei nesses 37 anos de estrada por essa base familiar de resistência e resiliência dos meus pais, porque eu era criança”, diz, emocionada ao lembrar a mãe, Dione Cardoso Rodrigues dos Santos, que morreu com diagnóstico de Covid-19 há pouco mais de um ano.

Conhecida por defender seus posicionamentos, como ela faz questão de salientar que aprendeu em casa com a mãe, ela conta que falar sobre a questão dos negros no gauchismo nem sempre é fácil. Alguns criticam, outros dizem se tratar de mimimi e vitimismo, enquanto outros reconhecem a importância de tocar na ferida, mas nunca levam adiante, diz ela.

Liliana conheceu um dos idealizadores do dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, o poeta gaúcho Oliveira Silveira. Ela conta que, em uma conversa sobre os movimentos tradicionalista e negro, ouviu dele que deveria seguir ocupando espaço no primeiro para seguir contando a história da negritude rio-grandense e ver os dois movimentos unidos um dia.

“Acho que o movimento tradicionalista tem que salvaguardar a cultura, a identidade, mas qual é essa identidade do gaúcho? O que é ser gaúcho? Os índios, os negros? Acho que esse debate tem que voltar porque a juventude que está aí tem feito essas perguntas e o movimento tem que ser espaço de diálogo”, diz ela.

A semana farroupilha foi aberta oficialmente na última terça-feira (14), quando o governador Eduardo Leite (PSDB) recebeu e acendeu a chama crioula no Palácio Piratini, sede centenária do governo gaúcho.

“É importante cultivarmos, por meio de símbolos e tradições, a nossa identidade, mas também a diversidade que nos torna maiores e mais capazes. História se faz aqui hoje, quando a chama é recebida por uma mulher negra, patrona dos festejos, e pelo primeiro governador assumidamente gay. E o mundo não acabou, pelo contrário”, disse ele na ocasião.

“Acho que o meu papel nessa vida terrena, como mulher negra, tem que ser transformador. Se eu não contar a história da minha ancestralidade, da minha negritude, quem contará? Se eu não conseguir levar à juventude ou até aos mais velhos a história que sempre foi, mas que poucas bibliografias empoderam, quem levará?”, afirma Liliana.

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