Pelo fim do sistema criminal: entenda o que defendem os abolicionistas penais

Luiz Silveira/Agência CNJ Brasil tem mais de 800 mil pessoas presas, a terceira maior população carcerária do mundo

O Brasil é o terceiro país com maior população carcerária no mundo. Segundo os últimos dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 800 mil pessoas estão presas nas penitenciárias brasileiras, número inferior apenas aos registrados nos Estados Unidos e na China. Apesar do índice alto – próximo ao da população de uma cidade como Nova Iguaçu (RJ) ou São Bernardo do Campo (SP) – as atuais políticas de segurança do governo de Jair Bolsonaro apontam para um crescimento de prisões. Na contramão dessa visão encarceradora estão os abolicionistas penais. Mas você sabe o que eles realmente defendem?

por Felipe Barbosa no Último Segundo

Luiz Silveira/Agência CNJ
Brasil tem mais de 800 mil pessoas presas, a terceira maior população carcerária do mundo

O professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Acácio Augusto, que é abolicionista e anarquista, explica que “o abolicionismo penal é um movimento que surge nos anos 1970 e é simultaneamente um movimento social e um movimento de estudiosos do sistema de justiça criminal e que visa a abolição desse sistema”.

Na mesma linha segue a professora de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Vera Malaguti, que passou a se considerar abolicionista quando aprofundou os estudos sobre prisão dentro do sistema penal. Ela ressalta que existem “vários abolicionismos” e também aponta para o seu início.

“Você tem abolicionismo penal na esquerda, na direita e nos anarquistas. Você tem abolicionismo penal desde o discurso liberal, até o discurso socialista e o discurso anarquista. Ele começa numa crítica a prisão em si e também ao estado no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Existe o abolicionismo penal do movimento negro, de movimentos religiosos, que são contra prisão, de movimentos socialistas, de movimentos de familiares de presos e tem toda uma história que vem desde o século XVIII e XIX, quando faziam uma crítica estrutural à prisão, não querendo reformas, mas afirmando que a prisão é uma instituição que só piora todos os problemas que ela finge resolver”, acrescenta.

Lucas Alencar, 24, abolicionista penal e assistente social que passou a estudar o movimento quando estava na graduação, lembra da origem do pensamento e de como ganhou força com os movimentos negros dos anos 1960 e 1970. “O abolicionismo penal surge como uma vertente da criminologia crítica e vem forte nos países nórdicos. Na Holanda, Noruega… esses países nórdicos fizeram uma discussão do abolicionismo penal dentro da perspectiva da situação deles e nos Estados Unidos ganhou uma potência por conta dos movimentos negros e da luta anti-cárcere lá, relacionado à guerra às drogas, ao apartheid, aos Panteras Negras”, diz.

“Lá [nos EUA] ganha esse fôlego e essa característica classista e racial muito forte, então desde sempre os próprios Panteras Negras estavam associando a guerra às drogas e o encarceramento com a perseguição da organização negra. E aí se populariza com a Angela Davis, que acho que é um dos nomes mais famosos e fortes do movimento”, acrescenta o jovem. “Abolicionismo penal não é um só também, tem muitos caminhos. Tem gente que parte de um processo mais gradual, tem gente que é mais radicalizado, como os anarquistas, tem gente que só acredita no abolicionismo pós-revolução, como os comunistas, enfim, acho que é muito diversificado, mas acho que a discussão está acontecendo”, avalia Alencar.

Pura utopia?

Chamados de utópicos por pleitearem o fim das prisões e do sistema penal, os abolicionistas explicam a razão de o pensamento não ser uma utopia. Para a professora Vera, utópico é acreditar que a prisão vai resolver os problemas de criminalidade ou vai ressocializar pessoas que cometeram crimes.

“Teve um grande professor holandês chamado Louk Hulsman que quando perguntavam pra ele se o abolicionismo era utópico, ele dizia: ‘utópica é a prisão, que há mais de 200 anos engana fingindo que resolve’,  porque não cumpriu nenhuma promessa desde a sua formação. A prisão não melhora nada, nem ninguém”, aponta.

“Todo preso é um preso político”

A estudante de Direito na Faculdade Estácio de Sergipe – Fase, em Aracaju, e abolicionista penal, Renata Santos, 25, explica a frase muito utilizada no meio dos grupos abolicionistas de que “todo preso é um preso político”. Segundo ela, a prisão serve como uma espécie de “filtro”.

“Toda prisão é uma prisão política e todo preso é um preso político porque o cárcere em si é uma política. Uma política de criminalização de corpos. É como se fosse um filtro e a gente passa por esse filtro todo mundo que o estado não consegue gerir. A gente está num estado capitalista em que não consegue e que deveria prover escola pra todo mundo, alimentação, moradia, lazer e a gente não consegue fazer isso”, opina.

“Então a gente joga a parcela obviamente preta e pobre nesses espaços pra conseguir gerir esses corpos e esses espaços seriam o cárcere. Então é entender isso como uma política mesmo. Uma política de higienização, uma política de extermínio e por isso que a gente fala que toda prisão é uma prisão política e todo preso é um preso político, porque faz parte dessa engrenagem do estado de gerir esses corpos”, complementa.

Já o professor Acácio Augusto exemplifica a frase de outra forma e pondera que não tem como descolar a política do direito penal: “Todo ordenamento jurídico responde a uma determinada organização política e social, que é histórica e responde a determinados anseios políticos. Nosso sistema de justiça criminal é todo baseado na proteção da propriedade privada. Nesse sentido, qualquer transgressão a lei tem um caráter político, na medida em que qualquer lei também é política”, afirma.

Sem prisão, qual a solução?

A ideia do abolicionismo penal não traz, necessariamente, respostas prontas para os problemas carcerários. Quando questionado sobre o que fazer com criminosos que cometem crimes contra a vida, o pesquisador e professor de pós-graduação de Ciências Criminais da Faculdade do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc), Luciano Góes, ressalta que o primeiro passo é pensar em possibilidades para abolir o atual sistema penal.

“Recrudescer o direito penal vai funcionar? Não. Aumentar as penas vai funcionar? Não. Ou seja, o direito penal não serve como instrumento para impedir crimes. Se fosse assim, pena de morte funcionaria e em alguns estados dos EUA não haveria mais nenhum crime por conta da pena de morte. Ou seja, isso não funciona. Mesmo assim, a gente continua apostando no direito penal”, lembra.

“O abolicionismo penal vem apontando essas outras possibilidades de resolução de crimes, que não chamamos como crime, mas de situações problemas, conflitos sociais. Mães que perderam os filhos para o Estado, por exemplo. Elas não querem uma punição para o policial. Algumas querem apenas uma desculpa do Estado, isso seria o suficiente. Ou para outras uma indenização, que é justo”, diz o professor, que defende que a vítima, quando possível, seja mais ouvida em um momento de julgamento.

A opinião também é defendida por Lucas Alencar. Para ele, o código penal não pode ser uma verdade absoluta. “Acho que o abolicionismo penal vem pra dizer que aquele artigo do código penal que diz ‘tantos anos de prisão para determinado tipo de ato ilícito’ não satisfaz todo mundo, porque cada um sente essas coisas de um jeito. Pra um cara que teve o celular roubado, ter o celular de volta é suficiente ou um pedido de desculpas ou, enfim, que o cara faça um jardim, corte a grama do jardim dele. E pra uma pessoa que foi vítima de violência é muito mais múltiplo”.

Para introduzir o tema na sociedade, Alencar defende que é preciso mostrar à população mais pobre que ela é a principal atingida com o sistema penal atual. “Na periferia é muito tranquilo você perguntar quem tem familiar que foi preso ou que está preso, ou que foi morto pela polícia ou passou por uma situação de abuso. Acho que tem que jogar com dados. Pensar com essas pessoas que a gente tem quase 1 milhão de pessoas presas, mais de 800 mil pessoas presas e contando, a gente tem uma polícia que mais mata…”, afirma.

Já Vera Malaguti diz que ser abolicionista não significa soltar todos os presos de uma hora para outra. “Você pode trabalhar a questão prisional com uma estratégia abolicionista. O Brasil tá vivendo uma febre de resolver tudo por pena de prisão. De uns anos pra cá, principalmente a partir dos anos 1990, começou a ter uma fé de que todos os problemas que a gente tem se resolve com mais prisão e mais pena. E aí produziu essa situação maluca”, avalia.

“O problema é que a população brasileira está completamente cega e educada pra gostar de prisão, de tortura, de matar. [Nós abolicionistas] estamos  na contramão disso. Mas quando a mentalidade é essa no Ministério da Justiça, na presidência, governo do estado do Rio, enfim, aí é difícil”, opina a professora.

Angela Davis esteve no Brasil em 2019; ela é um dos maiores nomes do abolicionismo penal no mundo atualmente/ Foto: Rogério Vieira

Liberalização das drogas: a solução a curto prazo

Por mais que acreditem que a abolição do sistema penal e das prisões seja o ideal, os abolicionistas entendem que a pauta não é simples de ser colocada em prática e, por isso, sugerem políticas para diminuir a população carcerária brasileira, que tende a crescer, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, 8,3% ao ano e chegar a quase 1,5 milhão em 2025.

“Temos que tentar ver outras formas responsáveis de conflito, como a justiça restaurativa. Fazer medidas de desencarceramento, porque dos cinco países que mais prendem do mundo, o Brasil é o único que não pensa numa política de desencarceramento. A gente está na contramão”, defende Renata Santos.

Acácio Augusto acredita que a liberação das drogas seja um primeiro passo para que o número de pessoas encarceradas diminua. “Para pelo menos recuar com essa tendência,, já que grande parte do contingente carcerário está nessa condição por crimes relacionados ao tráfico de drogas”, opina o professor, que critica ainda as prisões provisórias e os centros de acolhimento para jovens infratores.

“Seria necessário também uma força-tarefa da Justiça, porque você tem 40% da população carcerária presa provisoriamente (41,5%, de acordo com os últimos dados da CNJ). E parece que uma porta de entrada importante que pouca gente fala é a prisão para jovens, que é chamado de sistema socioeducativo. Muitas vezes o sujeito é incluído nesse sistema de delinquência já no que se conhece em São Paulo como Fundação Casa, no Rio como Degase, no Espírito Santo como Iases… A gente precisava olhar mais pra esse sistema de justiça juvenil, que virou a porta de entrada pra todo o sistema de justiça criminal”, completa.

Já o também professor Luciano Góes entende que a descriminalização das drogas é o ponto de partida para uma regressão. “Como finalidade, eu acho que nós temos que descriminalizar todas as drogas, já que o uso da droga não é e não pode ser criminalizado. Pois em nossos corpos, nós mandamos. E aí o Estado não pode fazer nada. A relação drogas-estado tem que vir pautada a partir da saúde pública e o direito penal tem que ficar muito longe”, pondera.

Pacote anticrime como”populismo penal”

De forma unânime, professores e ativistas do movimento abolicionista avaliaram que o pacote anticrime elaborado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro , e sancionado com alguns vetos por Bolsonaro ainda no fim de 2019, vai piorar a situação carcerária do país. Para o professor Acácio Augusto, o pacote se trata de um “populismo penal”.

“Populismo penal é a ideia que nunca se prove empiricamente que o aumento de penas ou o aumento do rigor da lei diminui a ocorrência de situações problemáticas ou fatos tidos como crime”, explica. “O que me preocupa nesse pacote é o aumento da pena máxima de 30 para 40 anos e o fim de uma série de progressões de pena, como liberdade condicional e até mesmo o que é chamado de ‘saidinha’.  […] Além disso, institui um tipo de controle bastante preocupante no cidadão, que é a coleta de dna de presos em banco de dados biométricos com a desculpa de poder ter maior controle com pessoas tidas como criminosas. Se tudo isso passar, as prisões superlotadas se tornarão mais lotadas ainda, aumentando o poder das faccções que se alimentam da presença de pessoas dentro da cadeia”, avalia.

Lucas Alencar aponta para o lucro que o governo pode ter com o encarceramento em massa, que pode aumentar com a aprovação do pacote anticrime. “Esse pacote vem numa tendência global de atender aos interesses do mercado quanto ao encarceramento. Essa tentativa de endurecer, de aumentar a quantidade de pessoas presas, de dificultar a saída dessas pessoas daquele lugar, associando ela a organizações criminosas, prolongando o tempo de pena delas, é pra atender a uma demanda futura de mercado de empresas que estão interessadas em gerir esses presídios, em conseguir convênios e fazer parcerias público-privadas”, salienta.

Para o professor Góes, a aprovação do pacote anticrime significa um retrocesso na questão de segurança brasileira e que os principais atingidos por novas políticas são os negros. “Esse pacote criminoso vai trazer mais mortes, vai potencializar o genocídio do povo negro, vai aumentar o encarceramento da massa negra, ou seja, é um pacote que tem como alvo o corpo negro”.

Homem foi a bar com suástica no braço e policiais que foram ao local nada fizeram; para o professor Luciano Góes, esse é um exemplo de que já existe abolicionismo para alguns (Reprodução/Twitter David Miranda)

Sociedade punitivista e racista

O professor Luciano Góes  entende que para inserir a ideia abolicionista na sociedade é necessário primeiro mostrar que o sistema atual é excludente e racista, e que deve-se mudar o pensamento punitivista inserido desde a infância, além de mostrar, por meio da educação básica, que a punição corporal é uma herança escravocrata.

“Não basta ser uma educação em termos punitivistas. Primeiro vai ter que ser uma educação antirracista. Quais são as respostas que nós damos a atos considerados errados? Os castigos são sempre corporais. Como que a gente pensa em castigos corporais sem pensar no legado do maior sistema escravista moderno que nós tivemos no mundo?”, questiona. “Para pensar o abolicionismo penal no Brasil, nós temos que pautar o racismo enquanto fonte dessas criminalizações”, salienta.

Góes também coloca que para uma parte da população, o abolicionismo penal já existe, isto é, para algumas pessoas, um ato é tipificado como crime ou não a depender da cor da pele. Como exemplo, ele cita o caso do homem que andou pelas ruas de Unaí, em Minas Gerais, com uma suástica, símbolo nazista, no braço e sequer foi detido pelos policiais chamados para atender à ocorrência.

“Aquele indivíduo que desfilou pelas ruas públicas, por eventos públicos, com uma suástica… Ele cometeu crime. Os policiais que estiveram no local também cometeram crime, o de prevaricação. Isso é apenas um episódio e nos mostra que o abolicionismo penal já existe. Ao invés de falar de criminalidade, nós temos que falar em processos de criminalização. E pensar no direito penal enquanto aparato punitivo essencialmente seletivo e, no Brasil, racialmente seletivo “.

Dados não são atualizados desde 2017

De acordo com os últimos dados divulgados pelo Depen, em junho de 2017, o número total de presos até aquele momento era de pouco mais de 706 mil. Desses, mais de 332 mil se declararam pretos e pardos, 185 mil brancos e mais de 147 mil não informaram a cor. Desde então, o Ministério da Justiça não atualizou os números e o mais recente é o divulgado pelo CNJ, citado na reportagem.

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