Reparações e compilações – Sueli Carneiro

(Foto: Marcus Steinmayer)

O jornal O Tempo, de Belo Horizonte, procurou-me, esta semana, interessado no tema das reparações que está pautado internacionalmente em função da Conferência de Racismo, que ocorrerá na África do Sul em agosto de 2001.

Por Sueli Carneiro

O tema me traz à lembrança o extraordinário artigo ‘‘Dívida de Sangue”, de Rubens Ricupero, na Folha de S. Paulo, sobre a monstruosidade do tráfico negreiro que trouxe para as Américas em torno de 11,5 milhões de africanos, a grande maioria deles para o Brasil. Nele, Ricupero demonstra, por meio de textos do séculos 18, como o tráfico negreiro se constituiu a mola propulsora do desenvolvimento da Europa Ocidental e da América como ‘‘inexaurível fundo de riqueza e poder” para essas nações, responsável ‘‘pela elevação do nível de vida de muitos europeus e americanos, ao mesmo tempo em que degradava a vida de numerosos negros escravizados”.

A conclusão de Ricupero em relação ao Brasil, que teve, conforme ele, ‘‘a cota maior na partilha do crime” do tráfico negreiro, está contida no próprio título do artigo: divida de sangue.

Já em Joaquim Nabuco, o problema está anunciado. Ele estrutura o seu livro Escravidão em três partes: a primeira ele denomina O Crime; a segunda, A História do Crime; a terceira, que está em branco (em duas das edições que conheço), o que talvez simbolicamente queira indicar a lacuna que está por ser preenchida na sociedade brasileira desde o século 19, chama-se A Reparação do Crime.

O vice-presidente Marco Maciel, no seminário ‘‘Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos”, organizado pelo Ministério da Justiça em 1996, resgata o que ele considera a visão profética e atualidade de Joaquim Nabuco para quem, ‘‘a escravidão permanecerá por muito tempo como característica nacional do Brasil, uma vez que a abolição não foi seguida de ‘‘medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso interior, de renovação da consciência pública”.

E Marco Maciel afirma: ‘‘Repito com Nabuco: ‘(…) não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir a obra da escravidão’ e ainda (…) ‘vencer o preconceito que se generalizou e tornar evidente o débito de sucessivas gerações de brasileiros para com a herança da escravidão que se transformou em discriminação é apenas parte do desafio’ ”

É essa base histórica que faz com que o tema das reparações seja, para muitos países africanos, para movimentos sociais negros do Brasil, dos EUA e da América Latina, um dos temas prioritários a serem discutido na Conferência Mundial de Racismo. E, em relação a ele, os governos dos países-membros da ONU deverão se posicionar.
O tema das reparações exige o reconhecimento de que povos, nações ou minorias foram submetidos a processos de escravidão, genocídio e espoliação com base em discriminações de raça, cor, religião.

É o reconhecimento de um passado nefasto em prol de um futuro em que certas práticas não possam mais ter lugar que faz com que hoje, trabalhadores, em sua maioria judeus que foram escravizados durante a Segunda Guerra Mundial, sejam objeto de indenizações pelo Estado alemão e empresas que disso se beneficiaram.
Dispomos também no Brasil de uma experiência respeitável nesse campo ao termos sido capazes de reparar, em algum grau, os familiares das vítimas do regime militar. Reparação material e simbólica que, ao expressar a nossa condenação moral às violências praticadas naquele período, reconcilia a nação, em parte, com os melhores valores da tradição democrática.

Em relação aos descendentes de africanos escravizados, os negros brasileiros, o terceiro capítulo do livro de Joaquim Nabuco continua em branco… Para Contardo Caligaris, (…) ‘‘corrigir a desigualdade, que é herdeira direta, ou melhor, continuação da escravatura, no Brasil, não significa corrigir os restos da escravatura. Significa começar finalmente a aboli-la”.

O presidente Fernando Henrique Cardoso, no seminário citado anteriormente, disse: ‘‘Não se pode esmorecer na hipocrisia e dizer que o nosso jeito é esse. Não, o nosso jeito está errado mesmo, há uma repetição de discriminações e há a inaceitabilidade do preconceito. Isso tem que ser desmascarado, tem de ser, realmente, contra-atacado, não só verbalmente, mas também em termos de mecanismos e processos que possam levar a uma transformação, no sentido de uma relação mais democrática entre as raças, entre os grupos sociais e entre as classes”.

Os movimentos sociais negros e outros setores sociais vêm oferecendo ao Estado e à sociedade toda sorte de propostas de políticas compensatórias capazes de realizar o que Ricupero chama de ‘‘purificação da memória”, que poderia conduzir à reconciliação da nação com o seu passado pela reparação do dano praticado.

As frases e falas aqui compiladas, os termos que as apóiam (dívida, débito, crime) e a importância pública de quem as profere permitem supor que já temos no Brasil massa crítica e vontade política suficientes para advogar em favor do tema das reparações na Conferência Mundial de Racismo e, sobretudo, para começar a implementá-las desde já.

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