Política, imaginário e representação: uma nova agenda para o século XXI?

“O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva socioeconômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar. Exatamente a partir das noções de mulata, doméstica e mãe preta que estavam ali, nos martelando com sua insistência.”
– LÉLIA GONZALEZ

Por Rosane Borges, do Blog da Boitempo

As vias por onde caminha a transformação política contemporânea

Um ligeiro recenseamento em torno das pautas de grupos historicamente discriminados, com destaque para o protagonismo das mulheres negras, nos permitirá observar o quanto as reivindicações vêm girando na órbita do estético e da visibilidade, orientadas por outra lógica de representação, incidindo no tecido social de modo a reconfigurar a política. Infatigavelmente, os exemplos, extraídos do chão do mundo vivido, onde se cultiva a experiência de produzir novos sentidos, não cessam de germinar: a enxurrada de artigos sobre a anacrônica figura da “Mulata Globeleza”; as reações contundentes à proposta “insólita” da Loja Reserva, cujo sócio é o apresentador global (a título de lembrete: a loja pintou manequins de preto e os pendurou de cabeça para baixo); o flagrante fotográfico no casal que desfilou todo pimpão com seu filho adotivo, um menino negro com fantasia do macaquinho Abu, o melhor amigo de Aladdin. A cena transcorreu no carnaval de Belo Horizonte.

Sob certos aspectos, esses movimentos de contraposição a práticas que teimam em permanecer na cadeia discursiva, conectadas pelo racismo e pelo sexismo, respondem ao incômodo acima transcrito. Para Lélia Gonzalez, o confinamento da mulher negra às figuras da mulata, da empregada doméstica e da preta velhareclama por outras rotas de análise e intervenção, visto que parte significativa da tradição teórica, sequiosa em desvelar o problema racial brasileiro sob a chave socioeconômica, mostrou-se insuficiente para alcançar o drama experimentado pela população negra em todas as dimensões de sua existência. Prevaleceu nos círculos de investigação o entendimento do racismo como exclusivamente um epifenômeno do capitalismo, o que perpetuou certa “naturalização” do lugar do negro na sociedade.

Sabe-se que o espanto intelectual é, a rigor, um motor importante para o desvelamento social, porém, diante das ocorrências cotidianas (morte aos borbotões de jovens negros pela polícia, pouca ou nenhuma presença de mulheres e homens negros na política institucionalizada em suas diversas esferas), não cremos que sem espanto ético as cordas da compreensão realmente vibrem.

Essas discussões habitam o coração dos antes chamados “movimentos de minorias” (negros, mulheres, gays, lésbicas, trans) que apontaram a indissociabilidade entre política e representação e propugnaram uma ação transformadora capaz de encontrar maneiras de (re)inventar um mundo possível, numa perspectiva estética, ética e política. Assim como Lélia Gonzalez, outras pensadoras do feminismo negro, a exemplo da ex-ministra Luiza Bairros, da filósofa Sueli Carneiro e da médica Jurema Werneck assinalaram, de modos diversos, que as antigas ordens de representação, agora em crise, mostravam-se incapazes de abarcar o “mosaico possível de acepções do humano”, o que supunha a tarefa de fundar uma nova gramática política, livre das orientações de um pensamento oxidado. Não se pode reduzir a questão ao par univesalismo eparticularismo, onde muitos quiseram alocá-la.

Marcadores históricos indicam parte da trajetória percorrida pelo tema. O discurso do reconhecimento é obra da aventura moderna, e a reivindicação de novos/outros regimes de representação/visibilidade destinados a grupos historicamente discriminados é fenômeno cuja fisionomia deita raízes desde o início do século XX. O edifício moderno suplantou a noção de honra para tornar legítima a de dignidade, concebida num sentido universalista e igualitário.

O exercício do visível passou a atuar em conformidade com um novo padrão: tudo o que havia de hierárquico no reconhecimento social teria de desaparecer, de contrariar as antigas marcas da “eleição privilegiada”, característica da aristocracia. Porém, as desigualdades inerentes ao capitalismo acentuaram as assimetrias com fundamento racial e de gênero, para ficarmos em dois exemplos. A permanência de hierarquias, só que desta feita sob outro viés, suscitou, já no alvorecer do século XX, uma explosão de críticas referentes à dinâmica das representações dos agrupamentos humanos; estas críticas não pararam de se expandir e adentraram o século XXI com força expressiva, puxadas pelo anzol da hipervisibilidade. Sob o curso de movimentações em fluxo contínuo na plataforma da transparência, reavivam-se as reivindicações por reconhecimento público. De acordo com Muniz Sodré, “a visibilidade – o plano das aparências – não é um requisito simples, pois suscita os problemas do reconhecimento social e do valor humano. Logo, é uma questão de natureza ética”.

E essa disputa pelo valor humano, como se testemunha, promove, de maneira decisiva, a insubordinação dos corpos “imperfeitos”, “indesejáveis” (negros, mulheres negras, obesas, gays, lésbicas, trans) frente aos signos visuais que teimam em estigmatizá-los, deformá-los, ignorá-los, excluí-los da paleta que representa cada um(a) e a todos(as). A feminista negra estadunidense, Patricia Hill Collins, refere-se aos corpos negros como imagens de controle (controlling images) que se prestam a fazer dos estereótipos um mecanismo que naturaliza o racismo, o sexismo, desigualdades de classe e outras formas de injustiça social (2000). Uma trincheira cada vez mais compacta, constituída em sua maioria por jovens, transborda os espaços materiais e digitais em reação as essas imagens calcificadas. Se toda transformação corresponde a uma mudança de sentido, de sua relevância e de seu valor, quais os sentidos que a negação das imagens estigmatizantes vem instaurando? Que novos sujeitos poderão surgir desses deslocamentos, já que o visível vem cada vez mais conformando nossa existência?

Rumores (in)discretos da subjetividade:* signos contra signos

* Este título é inspirado, parcialmente, no texto poético de Rosane Preciosa Siqueira, cognominado Rumores discretos da subjetividade.

Segundo o filósofo Gilles Deleuze, “o pensamento clássico mantinha a alma afastada da matéria e a essência do sujeito afastada das engrenagens corporais. Os marxistas, por sua vez, opunham as superestruturas subjetivas às relações de produção infraestruturais. Como falar da produção de subjetividade hoje?” (2010, p. 32).

Os slogans “Vai ter negra e gorda na universidade!”, “Vai ter preta periférica e trans na pós-graduação!”, “Respeitem meus cabelos, brancos!” sinalizam para novas formas de elaboração e exploração do político, onde o ético e o estético se imbricam em benefício da projeção de outras subjetividades, do reposicionamento das engrenagens corporais em lugares de prestígio da luta social e da reflexão crítica. Signos emergentes/insurgentes rebatem signos “estáveis”, enrijecidos, carcomidos por visibilidades que não cabem mais nos estereótipos de outrora. Perspectivas teóricas diversas se reinvestem de outras balizas capazes de responder aos apelos de problemas recorrentes. Vejamos algumas posições entre as mais consistentes.

Alex Ratts e Osmundo Pinho, professores de geografia, da Universidade Federal de Goiânia (UFG), e de ciências sociais, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), respectivamente, empreenderam análises em que as corporeidades ocupam posição central na dinâmica das hierarquias socioespaciais. Para ambos, os corpos de homens negros são geralmente racializados, subdivididos, sexualizados, desumanizados, o que interfere diretamente nas formas em que esses corpos são inseridos nos desdobramentos da política. Em seu mais recente livro, O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo, o professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, na tentativa de apresentar novos paradigmas políticos, já que nem as utopias de esquerda tampouco o capitalismo conseguiram auscultar o contemporâneo, questiona qual o sentido da política no mundo de hoje. Safatle vê no circuito dos afetos uma dimensão importante para uma teoria política da transformação, uma vez que as mudanças significativas não atingem apenas as formas de circulação de bens e de distribuição de riquezas, mas:

São modificações na estrutura dos sujeitos, em seus modos de determinação, nos regimes de suas economias psíquicas e nas dinâmicas de seus vínculos sociais. Pois uma transformação política não muda apenas o circuito dos bens. Modifica também o circuito de afetos que produzem corpos políticos, individuais e coletivos. Por isto, se quisermos ver a força de transformação de acontecimentos que começam novamente a se fazer sentir, é necessário que nos deixemos afetar pelo que pode instaurar novas corporeidades e formas de ser. (2015).

Embora partam de lugares diferentes, motivados por angulações diferenciadas, as proposições destes autores são solidárias entre si, bebem num poço comum, equilibram-se sobre elementos de uma mesma equação: despossuir os sujeitos de velhas identidades impostas, desobstruir vias para que se abram às novas corporeidades, adotando o capital relativo aos afetos (entendidos como aquilo que sinto, vejo e percebo) como fonte para o “esclarecimento da natureza dos impasses dos vínculos sociopolíticos”. (Safatle, 2015).

Imaginário: a orquestra que nos rege

Esses rearranjos só são possíveis se acrescentarmos às nossas estratégias de reflexão e intervenção o exercício permanente de interrogação das incidências imaginárias, vistas como uma matriz, uma atmosfera, uma fábrica que nos aloja no que faz laço social. Política, representação e imaginário formam um tripé incontornável, ainda que sobre ele pesem resistências justificadas pela crença de que a conquista do poder se dá pela disputa de espaços institucionalizados. Um pesquisador do campo das relações raciais publicou recentemente artigo em que empresta sua voz a este discurso: para ele, ao invés de segmentos da militância negra se aterem a denúncias de casos de racismo na publicidade e em outros espaços midiáticos, deveriam se preocupar em conquistar o núcleo do poder em diversas áreas da institucionalidade brasileira. Parece não saber o pesquisador que a conquista do poder passa necessariamente por agenciamento de imagens, por visibilidades (não fosse assim, o marketing político não seria a menina dos olhos das campanhas eleitorais). O pensador Dominque Colas encerra a questão: “toda a imagem do poder corresponde a um poder da imagem”.

As campanhas e os slogans que brotam nas redes sociais e nos espaços materiais conseguem, assim, interpelar as imagens de grupos subalternizados, questionando as regras que ordenam as visualidades, a sintaxe que lhes dá estrutura, flagrando o fantástico descompasso entre as trajetórias múltiplas e diferenciadas desses grupos e as imagens redutoras que insistem em representá-los (no que concerne às mulheres negras, para além de desenvolvermos funções subalternizadas, somos professoras, artistas, empreendedoras, escritoras, médicas…). Claro que não estamos cegas à sombra de melhora que se projeta nas formas de representação dos “tradicionalmente excluídos” dos códigos visuais, mas é inegável a persistência de discursos vinculados a arquétipos cristalizados no passado, reconhecíveis e normalmente aceitos, sancionados pelo imaginário, de onde provêm.

Não nos cabe aqui mergulhar nas definições intrincadas de imaginário. Interessa-nos pôr em relevo, de forma sucinta e banal, a ideia de que o termo recobre um repositório cultural de onde extraímos, sem saber, as referências (racismos e sexismos inclusos) que dão sentido às nossas vidas. O imaginário teria, assim, um papel precedente, o que não é estranho às várias tradições teóricas que consideram o ser humano resultado de antecedências: na letra foucaultiana, à exceção do psicótico, nascemos alienados no discurso vigente; para os teóricos da linguagem e da semiótica, ao falar, somos falados (Julia Kristeva), o humano já nasce como um efeito do outro, um intertexto (Bakhtin); no abecedário psicanalítico, o inconsciente desautoriza qualquer tentativa de proclamarmos um sujeito consciente, racional, senhor absoluto de si. Enfim, “o ser humano é pensado, em vez de se pensar soberanamente”.

Qual a lição que devemos tirar dessas espessas referências? Estariam elas induzindo a uma conformação frente às desigualdades e iniquidades do mundo? Teríamos de abdicar da ação política e nos resignar em ver a boa rotina do mundo em sua assombrosa imutabilidade? Deveríamos oferecer indulgência aos racistas, sexistas, homofóbicos e praticantes de todo tipo de discriminação?

Ao contrário. Considerar as incidências imaginárias como recursos que nos antecedem não corresponde a eliminar “a potência do indivíduo” (Sodré), a rebaixar importância da política no seu papel de reinterpretar, reelaborar e intervir no mundo tal qual se nos apresenta. Considerá-las, corresponde, antes, à adoção de uma tarefa política que também requer movimentos antecedentes tal como o funcionamento do próprio imaginário, ou seja, no território das sub-representações ou das visibilidades fraturadas mais do que promover a assunção de imagens positivas de grupos estigmatizados (o que já é uma conquista de envergadura) é preciso que produzamos outra ortografia do visual, com novas regras que possam acolher a pluralidade do universo. Como disse Judith Butler, não basta apenas disputar reconhecimento social, mas é preciso mudar as normas que atribuem reconhecimento diferenciado. Eis o nosso desafio. Se “cada um que nasce (re)inaugura consigo a humanidade inteira”, a responsabilidade pela construção de outra história, pela instauração de uma nova ordem de sentido e pelo declínio do fixo, do inalterável supõe um enfrentamento das regras não escritas que atribuem, de forma desigual, valor aos seres humanos.

Costuma-se afirmar que cada tempo possui desafios políticos específicos. Arriscaria dizer que a nossa época está sendo marcada por embates na ordem do imaginário, por guerra de imagens e signos, por sede de representação e visibilidade (até análises sobre o Estado Islâmico buscam no estatuto da visibilidade e da sociedade do espetáculo as chaves de compreensão desse fenômeno complexo). Pierre Bourdieu advertiu que “talvez não exista pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade”. (2001). E a luta simbólica, especialmente das mulheres negras, vem obtendo vitórias parciais, pois mesmo com o ônus histórico da representação, vem facultando a elas a possibilidade de exercerem papeis e funções fora do escopo dos arquétipos da empregada doméstica, da mulata e damãe preta. Na condição de “fazedoras” de mundos possíveis (A marcha que reuniu mais de 20 mil em Brasília no ano passado disso dá prova), tecem o manto da vida em suas múltiplas formas de existir e resistir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Rosane. Agora é que são elas: pode a subalterna falar-escrever? In: Revista Fórum, novembro de 2015.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalinas. São Paulo: Bertrand Brasil, 2001.
COLLINS, Patricia H. Black feminist thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. New York: Routledge, 2000.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2001.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
PINHO, Osmundo.  Qual é a identidade do homem negro?. Democracia Viva, nº22, junho/julho de 2004. Revista do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
RATTS, Alex. Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base acadêmica. Revista Nguzu,ano 1, n. 1, março/julho de 2011. Revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac & Naif, 2015.
SODRÉ, Muniz. A liberdade de viver no espelho. Jornal “O Estado de São Paulo”, caderno “Aliás”, 20 de dezembro de 2014

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Rosane Borges é mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, pós-doutoranda pela mesma Universidade, professora do curso de especialização do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), autora e organizadora de diversos livros, entre eles, Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (Imprensa Oficial, 2004), Mídia e racismo (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às terças.

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