Por um Moçambique mais igualitário

Participação das mulheres é fundamental para que onda de protestos pós-eleição aprimore democracia no país

Ouvir uma antropóloga feminista moçambicana sobre os protestos em seu país me levou ao Brasil de 2013: demandas populares legítimas reprimidas violentamente pelo Estado e sob o risco de serem capitalizadas por forças de oposição conservadoras.

As pessoas estão nas ruas denunciando irregularidades nas eleições, que mantiveram a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) no poder, ocupado por ela sem alternância há 50 anos —desde que o país se tornou independente de Portugal. Mas também por um descontentamento geral com o empobrecimento, a precarização dos serviços públicos, em especial a saúde, a baixa escolarização e a falta de empregos.

Membros da patrulha militar moçambicana vigiam as ruas da capital Maputo um dia após uma paralisação nacional contra o resultado das eleições – Siphiwe Sibeko – 8.nov.2024/REUTERS

“Estamos a atravessar um dos momentos mais críticos que o país já viveu nos últimos 15 anos, talvez desde o da guerra civil[1977 a 1992]. E com um grande potencial de transformação e de reconfiguração política”, disse a mulher que vive em Maputo e preferiu guardar anonimato.

“O cenário em Moçambique é complexo e não pode ser visto por binarismos simplistas ou de uma lente polarizada. Há um sentimento anti-Frelimo, mas é preciso trazer nuances e aprofundar a compreensão sobre os desafios que vêm há muito minando a consolidação da nossa democracia.”

Sem vinculações partidárias, ela ressaltou o momento delicado, de extrema tensão, fragmentação social e desconfiança em relação a pessoas que se coloquem publicamente sobre o que está acontecendo em Moçambique. Também relatou muita pressão para que se demonstre apoio ao candidato da oposição, este, por sua vez, um apoiador declarado de Bolsonaro e Trump. “Neste cenário, mesmo esta entrevista que estou a dar me colocaria desprotegida.” Desde as eleições do último 6 de outubro, 50 pessoas foram assassinadas em protestos, e jornalistas acabaram presos.

Sua trajetória nos ajuda a compreender muitas questões que Moçambique tem enfrentado nas últimas décadas. Feminista descolonial, ela trabalha há uma década em programas que buscam melhorias nas políticas públicas de educação, igualdade de gênero e direitos das mulheres.

Por estar em um contexto de privilégio em um país de muitas desigualdades, ela se dedica à redução dessas disparidades. Busca valorizar paradigmas e sistemas de conhecimento de matrizes africanas que podem constituir formas democráticas que sirvam melhor ao país.

Defensora de direitos humanos, participou da revisão da lei de educação que ampliou o ensino gratuito de seis para nove anos. Também esteve em campanha contra a proibição ao estudo no período diurno de meninas e mulheres grávidas.

Em um movimento de debate público sobre o comprimento das saias das meninas, ela foi uma das que defendeu que as roupas não eram motivo para assédios feitos por professores. “Foi uma luta não só pelo acesso à educação para as meninas, mas também contra a estrutura patriarcal muito presente nas instituições públicas”, afirmou.

Apesar da preocupação com o cenário incerto, a violência crescente e a polarização incentivada também pelas redes sociais, a antropóloga compartilha seu otimismo com o aumento da conscientização política, que pode levar a um aprofundamento democrático.

Ela tem frequentado rodas de conversas com mulheres de diferentes setores para incentivar que participem ativamente deste momento, tão definidor do futuro. As mulheres podem criar o novo ciclo da democracia de Moçambique. Futuro em que poderão falar o que quiserem, revelando o próprio nome.


Bianca Santana – Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”

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