Pretos e pardos são 78% dos mortos em ações policiais no RJ em 2019: ‘É o negro que sofre essa insegurança’, diz mãe de Ágatha

Pretos e pardos representam 78% dos mortos por intervenção policial no Rio de Janeiro em 2019. A informação consta em um levantamento do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ), obtido pelo G1 através da Lei de Acesso a Informação (LAI).

Das 1.814 pessoas mortas em ações da polícia no último ano, 1.423 foram pretas ou pardas. Entre elas, 43% tinham entre 14 e 30 anos de idade.

O número de mortes por intervenção legal foi o maior número registrado desde 1998. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população do estado se declara preta ou parda.

Para especialistas ouvidos pelo G1, os números mostram traços de racismo estrutural na política de segurança pública do estado.

A mãe da menina Ágatha Félix, morta aos 8 anos baleada durante operação no Complexo do Alemão, lamentou as vítimas deste tipo de ação e o preconceito com os negros.

Sobre os números, em nota, a PM argumentou que suas ações têm como objetivo principal preservar vidas, mas também disse que não cabe à corporação “avaliar o perfil etnológico de criminosos, mas sim enfrentá-los quando não aceitam a rendição e fazem a opção pelo confronto, disparando tiros em direção à tropa sem medir consequências”.

Na noite de sexta-feira (5), o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, deferiu uma liminar que proíbe realização de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia do novo coronavírus.

Na decisão, Fachin só autorizou operações em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito – com comunicação imediata ao MP-RJ.

Pesquisadores veem racismo em instituições

A pesquisadora Obirin Odara, que tem como área de estudo “Estado, Colonialidade e Branquitude”, diz que as constantes mortes de jovens negros e pobres no Rio de Janeiro acontecem como parte de um “projeto histórico”. Para ela, o racismo está presente nas instituições da sociedade.

“Se a gente for olhar a função da Segurança Pública, ela nasce para proteger os bens e propriedades da classe dominante. Ela não nasce para proteger o pobre, preto e favelado. Se a Segurança Pública entende que, para proteger a classe dominante, precisa matar os negros, ela vai matar”, disse Obirin Odara.

“A segurança pública é racista porque o projeto de sociedade é racista. Ela funciona de tal modo que todas as instituições dialoguem com esse projeto. A Polícia Militar vai alimentar uma execução de um projeto que é racista e vai ser racista também”, completou a pesquisadora.

Obirin Odara diz ainda que uma característica comum em mortes de pessoas negras é a presença de violência excessiva. Ela lembrou dos casos do menino João Pedro, da auxiliar de serviços gerais Claúdia da Silva e da chacina de Costa Barros. Segundo ela, o racismo nunca é abordado como motivo das mortes.

“No Brasil, o racismo vai tomando vários ‘nomes’. Você mata porque ele era uma ameaça, você mata porque ele tinha cara de ladrão, você mata porque achou que o guarda-chuva era um fuzil, você não diz ‘matei porque era negro’. Mas, quando a gente olha os dados, a gente fala “não”. Independente das narrativas que foram criadas, o que une essas mortes é, portanto, o fato de serem negros”.

George Floyd e menino João Pedro

Recentemente, a morte do adolescente João Pedro Mattos, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, e uma série de protestos após a morte de George Floyd nos Estados Unidos motivaram uma manifestação no Rio de Janeiro.

Manifestante protesta do lado de fora da prefeitura contra a morte de George Floyd, em Minneapolis, no Estados Unidos, na quinta-feira (28) (Foto: Reuters/Carlos Barria)

No último domingo (31), em frente ao Palácio Guanabara, manifestantes gritavam palavras de ordem e uma faixa foi estendida: “Vidas negras importam”.

O cientista político Pablo Nunes, pesquisador e coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, ressaltou que as estatísticas sobre as mortes de vítimas entre 14 e 30 anos surpreendem.

“A gente tem, nos últimos tempos, visto que as idades médias têm diminuído de forma progressiva, ou seja, a polícia tem matado pessoas cada vez mais jovens, e isso nos espanta, porque é toda uma geração, um número de pessoas que poderia estar vivendo e contribuindo para a sociedade. E tiveram suas vidas, de forma violenta e abrupta, interrompida pela mão do Estado, que deveria garantir a segurança e os direitos dos cidadãos”, disse.

Nunes criticou também o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e a política de operações policiais, mesmo em meio à pandemia da Covid-19.

O especialista lembrou que houve pessoas baleadas por policiais durante momentos de distribuição de cestas básicas e produtos de limpeza. Algumas vítimas morreram, com reclamações de familiares.

“Apesar do Witzel não falar mais em tiro na cabecinha, ele continua sendo o chefe das polícias que mais matam, e que possivelmente, dado o andar da carruagem, vão alcançar mais um recorde de letalidade policial esse ano. Se o ritmo continuar como está, a gente vai chegar a quase 2 mil pessoas mortas pela polícia esse ano”.

Os dados do ISP de 2020 indicam que o número de homicídios em ações policiais registrados entre janeiro e abril chegou a 606. No mesmo período de 2019, foram registrados 560 mortes por intervenção legal.

O coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio, Emanuel Queiroz, citou o racismo estrutural nos dados que mostram a morte de jovens negros, em sua maioria homens, no Rio de Janeiro.

“Essas pessoas vão ser criminalizadas, ainda mais pela nossa realidade de racismo estrutural. E quem não foi morto foi encarcerado. Qual é a faixa que mais sofre com a violência policial e o encarceramento? É a população negra, periférica e de baixa escolaridade”.

‘É o negro que passa essa insegurança’, diz mãe de Ágatha Félix

Em 23 de setembro de 2019, uma operação no Complexo do Alemão, na Zona Norte, terminou com a morte de Ágatha Félix, de 8 anos. Em dezembro, um policial militar foi denunciado pelo Ministério Público e hoje responde na justiça por homicídio qualificado.

Ágatha era uma menina negra, e cheia de sonhos. Quem conta é a mãe, Vanessa Francisco Sales. Ela diz que, inicialmente, relutou sobre a questão racial da filha ao falar do seu assassinato. Nove meses depois de ter perdido a filha única, no entanto, sua visão mudou.

“Eu confesso que eu relutei um tempo de ‘correr’ com as pessoas negras. Mas hoje está tão escrachado isso. É o sentimento do ‘eu mato negro sim, é o negro que passa essa insegurança, é o negro que não pode crescer, é o negro que não consegue’…Eu relutei contra isso, mas esse momento está me abrindo a visão disso. Ainda tem preconceito sim da parte da sociedade quanto ao negro. Mal sabem eles que o negro pode fazer muito mais. ”

Sentir falta da filha, e chorar de saudade, é uma rotina para Vanessa desde então. No entanto, ela diz que seu objetivo é sobreviver, para dar orgulho à filha que, segundo sua fé, a observa o tempo todo.

“Eu estou levando de uma forma ainda muito dolorosa, né? Porque eu acho que essa dor não sai. Mas todos os dias eu acordo querendo viver para dar alegria e orgulho para ela. Eu sinto falta, eu choro muito, mas eu acordo sempre com uma esperança no meu coração, porque minha filha está com Deus e ela está torcendo para que eu fique bem. Quero dar orgulho para ela porque ela foi o meu maior orgulho”.

(Foto: drasko/ThinkStock/)

Cristóvão Xavier de Brito perdeu o neto, Dyogo Costa Xavier de Brito, de 16 anos, durante uma operação policial em Niterói, na Região Metropolitana do Rio. O menino foi atingido nas costas por um disparo de fuzil em agosto de 2019.

Em entrevista ao G1, Cristóvão Brito criticou as operações policiais realizadas no Rio de Janeiro e condenou a política de Segurança Pública adotada no estado pelo governador Wilson Witzel (PSC).

“Eu não sei como não morre mais pessoas. Eu não sei como eles conseguem fazer as operações desse jeito. Em área de classe média, eles não fazem isso. Eu duvido. O governador manda atirar, manda matar se tiver com fuzil na mão. Meu neto estava com a chuteira na mochila, ele não tinha nada na mão. E agora? Estava indo treinar. Ele foi baleado de fuzil pelas costas”, disse o avô da vítima.

Para Cristóvão, as mortes de pessoas inocentes não vão parar. Ele lembrou de outras vítimas de violência policial e afirmou que ainda quer provar a inocência do neto.

“Aqui no Rio, a gente tem que fazer um movimento igual fizeram nos Estados Unidos sobre o rapaz que foi morto. A população se revoltou. Eu acho que lá não tem nem um terço da violência aqui. Mas as pessoas se revoltam mais do que aqui”, disse Cristóvão.

“A vida do meu neto, do João Pedro, da Ágatha não vai voltar mais. Eu não sei como eles [policiais] conseguem dormir”, diz o motorista. “Não consigo entender o que passa na cabeça deles. Eles deveriam assumir ‘eu atirei, achava que era um traficante’. Ele pode enganar a todo mundo, mas a Deus ele não vai enganar. Eu só queria provar para todo mundo que meu neto era bom”, completou.

Áreas com mais ocorrências

O levantamento também revela que a área do batalhão da PM de São Gonçalo, na Região Metropolitana, teve mais mortes registradas que qualquer outra no estado: foram 220 mortes, cerca de 12% do total, 78 a mais do que a área do 24º BPM (Queimados).

Os bairros com mais mortes registradas em São Gonçalo foram Jardim Catarina, com 26 mortes, e Bom Retiro, com 14 casos.

Os municípios com mais mortes registradas foram:

  • Rio de Janeiro: 726
  • São Gonçalo: 220
  • Niterói: 125
  • Belford Roxo: 119
  • Duque de Caxias: 111

A capital teve mais mortes registradas nos seguintes bairros:

  • Bangu: 49
  • Realengo: 25
  • Pavuna: 23
  • Cidade de Deus: 20
  • Tijuca: 19

Os municípios com mais mortes registradas em ações policiais em 2019 foram:

  • Rio de Janeiro 726
  • São Gonçalo220
  • Niterói 125
  • Belford Roxo119
  • Duque de Caxias111
  • Nova Iguaçu74
  • Itaguaí53
  • São João de Meriti50
  • Angra dos Reis50
  • Japeri48

Os 10 primeiros municípios registraram 850 homicídios, 46,8% das mortes (quase 50% do total) .

Dias com maior número de vítimas em 24 horas

Entre os dias com mais homicídios decorrentes de intervenção policial, duas datas registraram 18 vítimas em apenas 24 horas : 8 de fevereiro e 16 de setembro.

O primeiro dia foi na mesma data em que aconteceu a chacina do Morro Fallet-Fogueteiro. A segunda data, que registrou o mesmo número de casos, foi o dia 16 de setembro.

Se no dia 8 de fevereiro o número de mortes subiu por causa da operação no Fallet, em setembro as mortes foram distribuídas por diferentes partes do estado. Metade dessas mortes (9) foram na capital, mas também houve mortes registradas em Angra dos Reis, Macaé, Niterói, Belford Roxo, São João de Meriti e São Gonçalo.

Dias com mais mortes por intervenção legal:

  • 16/09/2019 18
  • 08/02/201918
  • 17/07/201917
  • 14/08/201915
  • 01/11/201915

O que dizem os citados

A Polícia Militar afirmou em nota “que as ações da Corporação no enfrentamento ao crime organizado são planejadas com base em informações de inteligência, tendo como preocupação central a preservação de vidas”. Veja, abaixo, a nota na íntegra:

A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que as ações da Corporação no enfrentamento ao crime organizado são planejadas com base em informações de inteligência, tendo como preocupação central a preservação de vidas.

O incansável trabalho desempenhado pela Corporação pode ser ilustrado pelo saldo operacional registrado deste ano. Somente a Polícia Militar apreendeu, nos cinco primeiros meses deste ano, mais de três mil armas de fogo, entre as quais 150 fuzis, praticamente todos fabricados no exterior. Nesse período, 14.182 pessoas foram conduzidas às unidades da Polícia Civil – 12.243 adultos presos e 1.939 adolescentes apreendidos.

Vale ressaltar que não cabe à Polícia Militar avaliar o perfil etnológico de criminosos, mas sim enfrentá-los quando não aceitam a rendição e fazem a opção pelo confronto, disparando tiros em direção à tropa sem medir consequências.

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