“Que a sociedade exerça o seu poder para se opor ao pacote anticrime de Moro” diz Maria Sylvia

FONTEKátia Mello

 

Nesta segunda-feira 20, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entregou a Rodrigo Maia, o presidente da Câmara, um relatório sobre o pacote anticrime do Ministro da Justiça, Sérgio Moro, em que manifesta “expressa oposição” a temas relevantes como a execução antecipada da pena e mudanças da legítima defesa para os agentes de segurança pública. Entre as recomendações feitas pela OAB está a recomendação de que deputados e senadores aprofundem a discussão em conjunto com outros projetos do mesmo tema. O pacote anticrime de Sérgio Moro foi amplamente discutido, no início do mês, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), com a participação do movimento negro. O debate aconteceu no 172º Período de Sessões da CIDH, em Kingston, na Jamaica.

Entre as organizações que fizeram parte estavam do encontro estava o Geledés – Instituto da Mulher Negra, representado por sua presidenta, Maria Sylvia Aparecida de Oliveira. Nesta entrevista à coluna Geledés no debate, Maria Sylvia faz análise sobre o impacto do pacote anticrime na população negra, com destaque para o genocídio dos jovens negros e a população carcerária.

Geledés – Como foi formada a comitiva de líderes negros que participaram Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)?

A ideia era formar uma comitiva representativa dos vários movimentos negros, das diferentes regiões do país nas áreas urbanas e rurais, atuando nas diferentes pautas: quilombolas; movimento de favelas; mães que perderam os filhos pela violência estado; ialorixá, marcando a importância do combate ao racismo religioso; cursinhos comunitários e a luta contra o genocídio. A imprensa negra e o Movimento Negro Unificado (MNU) também estavam representados. E claro que a luta das mulheres negras, uma das mais vigorosas, tinha que estar representada por Geledés – Instituto da Mulher Negra, Criola e a Marcha das Mulheres Negras. O esforço era formar um grupo que fosse representativo nas pautas de luta do movimento negro.

Geledés – O que foi discutido na audiência e qual a importância das temáticas para a população negra?

A audiência foi marcada após as organizações do Movimento Negro (do qual fazem parte mais de 40 entidades) protocolarem um documento denunciando o projeto de lei, denominado pacote anticrime, apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao Congresso Nacional. Apesar de esta ser a pauta principal, ainda pudemos denunciar os ataques aos defensores de direitos humanos e crimes políticos, como o que vitimou Marielle Franco; as absurdas incursões policiais no Rio de Janeiro com uso de helicópteros e as ações dos snipers promovidas pelo governador daquele Estado; a violência letal do Estado contra a juventude negra; o encarceramento em massa; e, também, a violência nos territórios quilombolas e, mais especificamente, a situação dos quilombos em Alcântara, onde 153 famílias foram retiradas para dar lugar à base de lançamento de foguetes. A comitiva, formada por 14 pessoas, sendo dez mulheres e quatro homens, levou as denúncias de violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado brasileiro para a 172º Período Extraordinário de Sessões da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) que ocorreu na Jamaica, no dia 9 de maio.

“Pudemos denunciar os ataques aos defensores de direitos humanos e crimes políticos, como o que vitimou Marielle Franco; as absurdas incursões policiais no Rio de Janeiro com uso de helicópteros e as ações dos snipers promovidas pelo governador daquele Estado; a violência letal do Estado contra a juventude negra; o encarceramento em massa; e, também, a violência nos territórios quilombolas.”

Geledés – O pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, viola os Direitos Humanos? De que forma?

O Brasil é signatário de todos os tratados internacionais de direitos humanos, sendo que o denominado Pacote “anticrime” viola, gravemente, as pactuações de proteção desses direitos que deveriam ser observados e promovidos pelo Estado brasileiro. As políticas de Segurança Pública efetivadas pelo Estado e, mais especificamente, o Projeto de Lei Anticrime apresentado ao Congresso Nacional violam proposições da Declaração Universal de Direitos Humanos e em nível regional a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), (Pacto De San José Da Costa Rica). Este projeto de lei viola também o bem jurídico mais importante, um direito básico, que é o direito à vida.

Veja o instituto da “plea bargain”; essa prática possibilita acordos entre a justiça e o investigado. O “plea bargain”, como é conhecido nos EUA – país que mais prende no mundo -, consiste em acordo entre a promotoria (correspondente ao Ministério Público, aqui no Brasil) e o réu. Com receio de responder por crime mais grave, o acusado se sente pressionado a aceitar o acordo mesmo sem ser culpado. Na prática, os presos têm negada a ampla defesa e o direito ao contraditório, uma vez que esta proposta fere uma série de direitos fundamentais no processo penal. É uma afronta ao devido processo legal e viola as garantias judiciais expressas na Convenção Americana De Direitos Humanos (1969), (Pacto De San José Da Costa Rica), no Capítulo II, Artigo 8º.

“A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. Existe uma seletividade racial demarcando quem são os “suspeitos”, quem são os supostos traficantes, principalmente nesta política equivocada de guerra às drogas.”

Geledés – O que significa para a população negra a prisão de pessoas condenadas antes do trânsito em julgado (quando não cabem mais recursos)?

O Brasil é o terceiro país no encarceramento de pessoas no mundo, com mais de 726 mil presos, sendo que desta total cerca de 64% são negros e 40% são presos provisórios, ou seja, cidadãos e cidadãs que seguem encarcerados sem julgamento definitivo. A prisão de pessoas condenadas antes do trânsito em julgado em instâncias superiores fere o princípio da presunção da inocência, previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, inciso LVII) e certamente levará ao cárcere inúmeras pessoas que não tiveram sua sentença definida.

Geledés – As medidas propostas por Sérgio Moro impactam no genocídio dos jovens negros do país? Se impactam, por favor, explique.

A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. Existe uma seletividade racial demarcando quem são os “suspeitos”, quem são os supostos traficantes, principalmente nesta política equivocada de guerra às drogas. Só no primeiro trimestre de 2019, a polícia do Rio de Janeiro matou 437 pessoas consideradas “suspeitas”, verdadeiras execuções de pena de morte sem qualquer direito a um processo, à defesa, a nada. É muito preocupante a ampliação das possibilidades de excludente de ilicitude do pacote “anticrime” de Sérgio Moro, a inclusão do novo § 2o do art. 23 do Código Penal, a partir da proposta apresentada, autoriza o juiz, ao analisar requisitos de legítima defesa, deixar de aplicar a lei e a pena prevista caso o excesso na conduta do agente do Estado decorra de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Certamente essas propostas ocasionarão a exacerbação do extermínio de jovens negros com a ampliação das hipóteses de excludentes de ilicitude o que significa verdadeira “carta branca para matar”.

“Como população negra, somos a parcela majoritariamente atingida pelas arbitrariedades deste pacote denominado “anticrime”. Sendo assim, estamos utilizando os meios possíveis para denunciar as violações de direitos deste projeto a fim de evitar que tenhamos que contar mais corpos.”

Geledés – Segundo pesquisa do Datafolha, 73% dos brasileiros nunca pensaram em comprar uma arma de fogo; 80% afirmaram que não comprariam uma com a flexibilização da compra e 81% se opõem à ideia de que policiais deveriam ter mais liberdade para atirar. Existe possibilidade de a população pressionar e o pacote não ser aprovado?

Eu quero muito acreditar que a sociedade exerça o seu poder de manifestação para se opor aos absurdos existentes no pacote anticrime de Sérgio Moro. Como população negra, somos a parcela majoritariamente atingida pelas arbitrariedades deste pacote denominado “anticrime”. Sendo assim, estamos utilizando os meios possíveis para denunciar as violações de direitos deste projeto a fim de evitar que tenhamos que contar mais corpos.

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