Reações ao mito da democracia racial no contexto moçambicano (séc. XX)

No início da década de 1950, houve uma crescente contestação contra o colonialismo, resultando no surgimento de vários movimentos de libertação nacional no continente africano. De forma relacional, ocorreu uma significativa mobilização do regime salazarista (1933-1974) para garantir as colônias portuguesas na África: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné portuguesa, Angola e Moçambique. O Estado português, no intuito de fortalecer sua posição no continente, valeu-se estrategicamente das ideias do sociólogo Gilberto Freyre nessa conjuntura, bem como financiou a sua viagem à Portugal, à África e à Ásia e promoveu a divulgação de suas obras e do seu pensamento nos meios de comunicação. 

É nessa conjuntura que Freyre aproxima-se cada vez mais da política colonial portuguesa e cria uma teoria que beneficiava os interesses políticos, econômicos, culturais e étnico-raciais de Portugal: o luso-tropicalismo. Tal conceito defendia que os portugueses tinham uma forma específica de agir e estar nas sociedades tropicais ao longo do tempo, destacando-se nos processos de miscigenação e hibridismo cultural. A argumentação dessa teoria se baseava na suposta experiência brasileira, considerada por Freyre a melhor “obra” portuguesa, uma vez que sua constituição sócia histórica resultaria em uma nação que seria uma referência mundial de civilização luso-tropical. O sociólogo brasileiro também acreditava que a partir da atuação portuguesa poderia ser instaurada, no plano internacional, a “maior democracia racial que o mundo jamais conheceu”, como afirmou no jornal Notícias, disponível no Arquivo Histórico de Moçambique, quando anunciava a sua satisfação em escutar a língua portuguesa no “Ultramar Português”. Em seu livro Aventura e Rotina (1953), Gilberto Freyre argumentava que o Brasil se fazia “sentir entre luso-africanos como estímulo à conservação e ao desenvolvimento de formas igualmente democráticas de convivência humana”. Por meio do luso-tropicalismo ainda Freyre defendia a predominância da cultura e dos valores portugueses e o processo de “assimilação” (um eufemismo para “violência”) cultural. Na narrativa desse sociólogo, a principal referência social ainda é um país europeu (luso + trópicos). Gilberto Freyre não questionava a posição subalterna ocupada por sujeitos não-brancos nas relações de poder ou, quando o fazia, não atrelava a responsabilidade por tal situação ao processo colonial português. Além disso, embora ele tivesse enfatizado o grupo racial “mestiço” em sua teoria, supervalorizou e beneficiou uma parcela significativa do grupo racial branco quando se associou aos interesses coloniais. Cabe enfatizar que a situação colonial e a discriminação racial são indissociáveis de acordo com o martinicano Frantz Fanon

Quando Freyre visitou a cidade de Lourenço Marques, em 1952, o Diretor do Centro Associativo dos Negros era Enoque Joshua Libombo. Esse funcionário municipal recepcionou o brasileiro naquela instituição e aproveitou a presença de diversas autoridades, bem como a cobertura da imprensa, para levantar questões desconfortáveis, como a discriminação racial. Em seu discurso, publicado no jornal Notícias, Libombo assumiu um tom elogioso e respeitoso, aparentando uma fala polida e compatível com a expectativa das pessoas presentes. Entretanto, sua argumentação indicava algumas discrepâncias entre narrativa e práticas sociais por meio de expressões como “os portugueses de Moçambique sem distinção de côr nem de raça, como acontece nos outros povos, trabalham de braços dados em todos os sectores de actividade pública”. Tal afirmação não era encontrada no cotidiano colonial. 

Cabe mencionar que Enoque Libombo foi considerado por muitos um “traidor” de Moçambique por ter apoiado e ter sido beneficiado pelo regime colonial por meio de viagens, emprego e status diferenciado. Por outro lado, à sua maneira, tentou pressionar a administração colonial ao defender publicamente que todos os “portugueses” deveriam ser tratados iguais independente da identificação racial. Em outras palavras, Enoque Libombo resistiu à discriminação sem contestar o sistema colonial vigente, já que acreditava que a colonização poderia ser um caminho viável para o desenvolvimento dos “nativos”. Tal posição pode ser justificada parcialmente pelo fato de Libombo acreditar que o Brasil era uma nação modelo resultante da obra portuguesa e uma irmã mais velha das “províncias ultramarinas”, ou seja, uma sociedade a ser admirada e seguida. Apesar da crítica exposta em seu discurso, ele parece não ter sido entendido – ou possivelmente ignorado – em prol da ilusão de uma civilização transnacional caracterizada pela harmonia racial. 

Na década de 1960, pelo menos dois intelectuais de Moçambique fizeram questão de reagir publicamente ao luso-tropicalismo e, vinculado a essa teoria, à ilusão da democracia racial: o poeta e jornalista José Craveirinha (1922-2003) e o sociólogo e professor Eduardo Mondlane (1920-1969). Craveirinha criticou um livro didático da 4ª classe, no jornal Tribuna (1962), questionando os autores selecionados para compor tal publicação e, entre outras pontos, disse que “nalguns casos a seleção foi tão inadvertida e tão pouco previdente que incluiu num livro de leituras para alunos de todas as origens étnicas: negros, mestiços, indianos, etc., excertos de autor consagrado na opinião pública validamente esclarecida como defensor de ideias contrárias ao respeito por aquilo que hoje tão frequentemente se ouve chamar de “multirracial” ou aquilo a que o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre entusiasticamente exaltou como “luso-tropicalismo”. 

No artigo Brasil – África (1963), também transcrito por Luciana B. Vieira, o jornalista afirma o seguinte sobre a abstenção da delegação brasileira na assembleia das Nações Unidas a respeito das sanções contra a política de discriminação racial na República da África do Sul: “A abstenção brasileira foi um soco violento na face dos que não podem deixar de considerar a pátria de Castro Alves o país campeão da igualdade humana sem preconceitos de cor, porque abster-se é consentir, aceitar, admitir, contemporizar. Foi uma tomada de posição dúbia e não coerente com as tradições do Brasil. […]. Essa espécie de diplomacia servirá a outros que não ao Brasil, país que nós consideramos irmão por todo um mundo de afinidades”. De certa forma, esse escritor acreditava que o conceito freyreano poderia ser um parâmetro agregador nas relações sociais. Por sua vez, Mondlane, um dos fundadores da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), desconstrói o argumento de Freyre em seu livro The Struggle for Mozambique (1969)/Lutar por Moçambique (1975) e no artigo Race Relations and Portuguese Colonial Policy with Special Reference to Mozambique (1968) ao demonstrar que a colonização portuguesa se baseava na discriminação racial, deslegitimando qualquer perspectiva positiva da “complicada teoria de luso-tropicalismo”, já que partia de uma narrativa incompatível com a realidade social.

Amália Fonseca, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane (falando ao microfone), Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, entre outros, na II Conferência da Conferência das Organizações Nacionalistas Colónias Portuguesas. Fotografia. Dar-Es-Salam. Outubro de 1965. Fonte: Fundo Arquivo Mário Pinto de Andrade. Casa Comum – Fundação Mário Soares.

É bem provável que a crítica à noção de “democracia racial”, que se encontrava atrelada ao discurso luso-tropicalista de Gilberto Freyre, não tenha sido feita de forma pontual, pois as ideias circulavam em diferentes espaços. Entre os combatentes ao mito da democracia racial, podemos mencionar, além de Eduardo Mondlane, o gôes Aquino de Bragança e os angolanos Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto. Interessante notar que todas as pessoas africanas mencionadas acima eram consideradas pelo governo colonial “assimiladas” à cultura portuguesa. No entanto, tal enquadramento não lhes garantia a igualdade de oportunidades e de tratamento, fator poderoso para a contestação da situação colonial e da discriminação racial vigente.

A identificação das pessoas é um aspecto importante para abordar a temática racial. Apesar de alguns sujeitos mencionados no presente texto serem identificados atualmente como “negros” ou “moçambicanos”, o uso desses termos pode ser anacrônico dependendo do caso. Enquanto Libombo se identificava nacionalmente como português, por ter nascido em Moçambique, uma extensão territorial de Portugal na perspectiva colonial, Craveirinha se identificava “etnicamente” como mestiço e rejeitava a classificação “mulato”, que considerava pejorativa. No mesmo sentido, um independentista de Angola poderia se identificar nacionalmente como angolano e ser heteroidentificado como português, como foi o caso do participante do Movimento Afro-Brasileiro Pró-Libertação de Angola, Paulo Matoso, quando prestava depoimento no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no Brasil. Após a independência nacional das colônias, as formas de identificação foram rearticuladas, demonstrando o caráter complexo, múltiplo e móvel das identidades. Isso indica o quanto as especificidades identitárias devem ser contextualizadas para não cairmos em generalizações ou em categorizações que não correspondem às dinâmicas de certas sociedades em determinados períodos históricos. 

Considerar essas informações pode nos ajudar a compreender por que determinados argumentos são mobilizados por parte de algumas pessoas, como a afinidade de José Craveirinha por um projeto de sociedade “multirracial” e a posição política de Mondlane em desconstruir a fachada da harmonia racial/teoria luso-tropical. Outro ponto fundamental é historicizar as categorias e conceitos. Por exemplo, os termos “raça” e “mestiçagem” podem remeter a uma falsa noção biológica das relações sociais e de um suposto “tipo humano” ou cultura pura, fixa e original (e não cultural e fenotípica), mas são utilizados de forma estratégica por diversos grupos sociais ao longo da história contemporânea. No caso da conjuntura que foi abordada a pouco, houve a tentativa de omitir as desigualdades raciais e culturais produzidas pelo colonialismo por meio da difusão de uma construção discursiva baseada na diversidade social, sendo que esses não são elementos excludentes. Relacionada a essa manobra estatal, Gilberto Freyre anunciava em situações específicas que os portugueses eram um povo “mestiço” ignorando que o caráter relacional entre as sociedades pode ser aplicado ao longo da história, não depende da predisposição e atuação lusitana nos trópicos. 

Debater a centralidade do mito da democracia racial, na lógica argumentativa do luso-tropicalismo, é uma das formas de colaborar para desmistificar a noção segundo a qual sociedades consideradas “miscigenadas”, multirraciais ou interculturais são sinônimas de sociedades sem racismo ou com um nível baixo de desigualdade racial. Negar a existência dessa prática em uma sociedade diversificada do ponto de vista fenotípico/racial, étnico e cultural é colaborar com a manutenção de práticas discriminatórias, uma vez que a questão não é colocada em pauta para ser questionada e, consequentemente, transformada. A ideia de “somos todos portugueses” ou o projeto de ser “uma grande civilização transcontinental baseada na democracia racial” escondia a intenção de manter práticas paternalistas, repressivas e imperialistas em relação a povos com determinadas características físicas e dinâmicas sociais. 

Por outro lado, devido a um processo de racialização das pessoas negras nos últimos séculos, percebe-se a existência de interesses comuns entre esses sujeitos, apesar de suas especificidades, como a luta para a erradicação do racismo. Como demonstrado por meio da posição de Libombo, Mondlane e Craveirinha, identificar-se racialmente de forma semelhante não tornou eles pertencentes a um grupo homogêneo, com argumentos, interesses e trajetórias comuns. Divulgar que as pessoas não são aliadas “naturais” pelo teor de melanina na pele ou por pertencerem a um mesmo continente é outro ponto a ser salientado, pois quebra com perspectivas dicotômicas como colonizador versus colonizado e branco versus negros. Por fim, é preciso evidenciar que o mito da democracia racial persiste na atualidade sob diversas roupagens e com o mesmo intuito: garantir a manutenção das hierarquias sociais e raciais. 

Assista ao vídeo da historiadora Ivangilda Bispo dos Santos no Acervo Cultne sobre este artigo: 

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

 

Ensino Fundamental: 

EF08HI26 (8º Identificar e contextualizar o protagonismo das populações locais na resistência ao imperialismo na África e Ásia).

EF09HI14 (9º Caracterizar e discutir as dinâmicas do colonialismo no continente africano e asiático e as lógicas de resistência das populações locais diante das questões internacionais).

EF09HI31 (9º Descrever e avaliar os processos de descolonização na África e na Ásia).

EF09HI36 (9º Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência).

 

Ensino Médio: 

(EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos.

(EM13CHS603) Analisar a formação de diferentes países, povos e nações e de suas experiências políticas e de exercício da cidadania, aplicando conceitos políticos básicos (Estado, poder, formas, sistemas e regimes de governo, soberania etc.)

 

Ivangilda Bispo dos Santos

Historiadora, Universidade Federal de Minas Gerais; E-mail: [email protected]; Instagram @ivangilda_bispo.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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