A Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou o relatório “Impactos das inundações no Rio Grande do Sul: observações e recomendações para a garantia dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais“. O documento apresenta observações e recomendações dirigidas ao Estado brasileiro, com base na visita de trabalho realizada entre os dias 2 e 6 de dezembro de 2024, após uma das maiores tragédias socioambientais da história recente do país.
Durante a missão, liderada pelo Relator Especial Javier Palummo Lantes, a equipe da REDESCA reuniu-se com autoridades, movimentos sociais, lideranças comunitárias, membros da comunidade científica e visitou comunidades diretamente afetadas pelas inundações. As atividades incluíram reuniões e visitas técnicas em Brasília, Porto Alegre, Eldorado do Sul e na região do Vale do Taquari, incluindo os municípios de Estrela e Lajeado. O principal objetivo foi documentar os impactos da tragédia sobre os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, com ênfase especial na resposta emergencial, nas ações de mitigação, nos processos de reconstrução e nas estratégias de adaptação às mudanças climáticas.
A Relatoria Especial destaca que mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas pelas inundações ocorridas entre abril e maio de 2024, que resultaram em 183 mortes confirmadas, 27 pessoas desaparecidas, cerca de 800 feridas e milhares de famílias deslocadas. O relatório evidencia a desproporcionalidade dos impactos sobre grupos em situação de maior vulnerabilidade, incluindo meninas e mulheres, pessoas afrodescendentes, povos indígenas e comunidades tradicionais, pessoas com deficiência, pessoas idosas, população LGBTQIA+, migrantes e refugiados, bem como trabalhadores e trabalhadoras rurais e informais.
A Relatoria Especial reconhece os esforços do Estado brasileiro na resposta à tragédia, entre eles a mobilização de recursos financeiros, a criação de estruturas de gestão da crise, a ampliação de programas sociais, o apoio a municípios em estado de calamidade e a implementação de ações coordenadas entre os níveis federal, estadual e municipal, em articulação com a sociedade civil e organismos internacionais. Destacam-se, em particular, as ações de resgate, a rapidez na organização da assistência humanitária, a reconstrução da infraestrutura e o apoio prestado à população afetada como elementos fundamentais para mitigar os danos imediatos da catástrofe.
Com base nas informações coletadas durante a visita e na análise dos dados disponíveis, o relatório identifica falhas estruturais que podem ter contribuído para a magnitude dos impactos sobre os DESCA, entre elas a degradação ambiental, a expansão do agronegócio, o enfraquecimento da legislação ambiental, a falta de manutenção dos sistemas de contenção de enchentes e o crescimento urbano com baixa resiliência ambiental.
O relatório destaca os impactos da tragédia climática sobre trabalhadores e trabalhadoras de diversos setores, em especial aqueles em situação de informalidade, como pessoas que atuam na pesca artesanal, na coleta de materiais recicláveis, no trabalho por aplicativos e na produção artesanal, que enfrentaram perda de renda e ausência de proteção social. Também foram observados efeitos severos sobre comunidades rurais, povos indígenas e quilombolas, incluindo o aumento da insegurança alimentar. A REDESCA recomenda o avanço na titulação de territórios quilombolas, na reforma agrária e na demarcação de terras indígenas, ao mesmo tempo em que rejeita de forma categórica a tese do “marco temporal”.
Destaque para trechos importantes e de atenção do relatório “Impactos das inundações no Rio Grande do Sul: observações e recomendações para a garantia dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais”
- Entre 2003 e 2021, o Rio Grande do Sul registrou 4.230 ocorrências de desastres naturais, abrangendo fenômenos extremos ou intensos que causaram danos significativos. No período de 2017 a 2021, aproximadamente 4,44 milhões de pessoas em 482 dos 497 municípios foram afetadas por eventos como estiagens, alagamentos, inundações e chuvas intensas. Ao longo de 17 anos (2003 a 2021) houve 256 ocorrências de inundações, com emissão de decretos por 133 municípios. Esses desastres resultaram em prejuízos econômicos estimados em R$ 22,9 bilhões, sendo 97,6% no setor privado e 2,3% no setor público.
- As enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul entre abril e maio de 2024 resultaram em 183 mortes, mais de 800 feridos e 27 pessoas desaparecidas. Estima-se que mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas de alguma forma pelo impacto das enchentes, com mais de 580 mil deslocados climáticos durante a tragédia, destes muitos já retornaram, mas outros perderam suas casas e comunidades permanentemente.
- A relação entre desastres ambientais e a garantia dos direitos humanos tem sido amplamente reconhecida. A intensificação dos eventos climáticos extremos reforça a urgência de integrar políticas públicas de enfrentamento às emergências climáticas com uma abordagem de direitos humanos, garantindo que a resposta estatal seja eficaz, equitativa e sustentável.
- Também foi exposta a questão do racismo religioso e seu impacto sobre as pessoas afrodescendentes, que requerem políticas públicas para preservar sua cultura e modo de vida, especialmente após a inundação. Além disso, ressaltou-se a necessidade de visibilidade para a população migrante e os deslocados climáticos, povos indígenas e ciganos, comunidades quilombolas e ribeirinhas, e pessoas LGBTQIA+.
- Os impactos das enchentes no Rio Grande do Sul revelaram as desigualdades estruturais e os efeitos desproporcionais que desastres climáticos têm sobre diferentes grupos em situação de vulnerabilidade. Tais eventos não apenas evidenciam as desigualdades pré-existentes, mas também ampliam as barreiras enfrentadas por pessoas e comunidades que historicamente sofreram discriminação e exclusão social. Esses impactos destacam a necessidade de analisar e responder às particularidades vivenciadas por esses grupos, considerando suas condições sociais, culturais e econômicas específicas. Sendo assim, destaca-se que as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024 causaram perda de vidas e destruição material, e também expuseram profundas desigualdades sociais, evidenciando um cenário de racismo ambiental.
- A desigualdade estrutural e o racismo ambiental também são aspectos que devem ser considerados, conforme destacado nas conversas com as comunidades, organizações da sociedade civil e autoridades durante a visita. Nessas interações, foi apontado o papel central que tais fatores desempenham na amplificação dos impactos das enchentes no Rio Grande do Sul em 2024, afetando desproporcionalmente comunidades indígenas, quilombolas e populações de baixa renda. A REDESCA alertou que essas comunidades enfrentam condições de habitação precárias, ausência de infraestrutura básica e dificuldades no acesso a serviços essenciais, o que as torna mais vulneráveis aos desastres climáticos.
- A tragédia climática no Rio Grande do Sul serve como um alerta sobre a necessidade de políticas públicas que considerem as desigualdades raciais e sociais na gestão de desastres. É essencial que estratégias de prevenção e resposta a desastres incluam a participação ativa das comunidades afetadas, garantindo que suas vozes sejam ouvidas e suas necessidades atendidas. Além disso, é fundamental reconhecer e combater o racismo ambiental, promovendo justiça socioambiental e assegurando que todos tenham o direito a um ambiente seguro e saudável.
- No Quilombo dos Machados a REDESCA pode ouvir sobre a discriminação que sofrem os quilombolas, os povos e comunidades de terreiro e os de matriz africana por conta do racismo estrutural, institucional e religioso. Recordaram o caso Comunidades Quilombolas de Alcântara vs. Brasil perante a Corte Interamericana e reivindicaram que todas as políticas públicas respeitem seus direitos a consulta prévia, livre e informada nos termos da Convenção 169 da OIT189.
- A tragédia climática no Rio Grande do Sul serve como um alerta sobre a necessidade de políticas públicas que considerem as desigualdades raciais e sociais na gestão de desastres. É essencial que estratégias de prevenção e resposta a desastres incluam a participação ativa das comunidades afetadas, garantindo que suas vozes sejam ouvidas e suas necessidades atendidas. Além disso, é fundamental reconhecer e combater o racismo ambiental, promovendo justiça socioambiental e assegurando que todos tenham o direito a um ambiente seguro e saudável.
Acesse relatório completo aqui: https://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/2025/INFORME_REDESCA_BRASIL_PT.pdf
Mariana Belmont é jornalista, pesquisadora e organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023) e atualmente é Assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra.