Sambas, quintais e Arranha-Céus: as micro-áfricas em São Paulo

O livro “Sambas, quintais e Arranha-Céus: as micro-áfricas em São Paulo” nos livra de um mito caro à memória musical da cidade – o de que ela seria o túmulo do samba. Esse clichê se transformou na narrativa pivô para se pensar que nessas paragens apenas o ruído das fábricas, automóveis, negócios e os incontáveis sons urbanos moldariam a vida paulistana.

por Amailton Magno Azevedo no Guest Post de Geledés

Por meio da trajetória pessoal do sambista Geraldo Filme pude perceber como sua música encerra esse chavão esquemático e liberta a cidade da morte fria enclausurada no túmulo e do silêncio inventado. Instituiu o lugar ímpar para esse samba com memórias rurais e religiosas dos tambores de Pirapora do Bom Jesus. Nunca mais São Paulo e os negros que aqui vivem serão taxados de anti-musicais.

Geraldo é apenas uma experiência entre tantas outras que coparticiparam da construção do samba, e aqui cito alguns: Zeca da Casa Verde, Toniquinho Batuqueiro, Osvaldinho da Cuíca, Pato N´água, Xangô, Carlão General da Banda e muitos e muitos outros.

Outra contribuição fundamental desse livro é o conceito de micro-áfricas como chave de interpretação das expressões culturais negras. A partir deste conceito que o autor vai reconstruir  as memórias e vivências dos negros paulistas. Carnavais e festas; família e amizade; shows e discos; instrumentos e letras musicais revelam territórios e vivências que teimaram em existir configurando um mapa cultural heteregêneo e multicêntrico. As micro-áfricas revelaram uma dimensão negra e urbana da metrópole.  

As resistências forjadas não livraram os negros de sofrer o racismo. Entre os três agentes sociais que engendraram a urbanização brasileira – o negro descendente de escravo, o migrante pobre brasileiro e o imigrante estrangeiro, apenas o último enriqueceu. Não se trata de nacionalismo tacanho ou coisa parecida, apenas a revelação do racismo nos trópicos. Se a grana tem a força de destruir coisas belas, como bem disse Caetano Veloso, essa talvez não tenha sido feita pelos negros paulistas.

Quando conheci Geraldo Filme, não pessoalmente, mas através de sua música, me pareceu sublime, singelo, bonito, sincero. Isso ocorreu através do músico e amigo “Lê” Menestrel, que o apresentou tocando um samba de Geraldo. Não me lembro exatamente a data em que isso ocorreu, recordo do som que me encantou. Após aquela apresentação, a música de Geraldo Filme ficou em mim como uma memória sonora que me provocava uma vontade de querer saber mais. Ao fim do ano de 2002, Geraldo Filme retornaria, dessa vez não só pelos ouvidos, mas também  via imagem, por meio de uma entrevista a que assisti. Aí tudo se confirmou.

A admiração que eu havia construído por ele quando do primeiro encontro ampliou-se, pois pude ali ver a força daquele homem negro, de voz grave e intimista, cantando samba. Os seus sambas me soaram de forma intensa, fazendo-me perceber que  naquela música haveria possivelmente algo  incomum. Aquilo que soara diferente era a extensa memória que envolvia aquele canto. Mas eu não sabia disso ainda. O que eu comecei a ter naquele momento foi um desejo de pesquisa que nascia para saber mais sobre aquele homem, sua música e sua história.

Geraldo viveu entre os anos de 1927 e 1995, portanto, vivenciou as transformações urbanas pelas quais a cidade de São Paulo passou. Foi testemunha das fremências, do frenético ritmo do urbano e suas sonoridades, dos serialismos e massificação da cultura à moda europeia e norte-americana que penetraram as subjetividades e alardearam novos padrões de sociabilidade e civilidade, dando forma ao espetáculo da Metrópole paulistana enlouquecida pelo frenesi da técnica, que seduziu calmamente seus habitantes[1]. Mas Geraldo foi também testemunha das experiências demolidoras do normativo, ou pelo menos daquelas que criaram ponto de fuga a ele. Isso não significa associar sua memória ao exótico ou ao primitivismo como antítese à Modernidade, mas pensar em como atuou em zonas não formatadas pela serialização da cultura e da subjetividade, nas quais  os exus brincalhões e orixás da música instituíram surpresas com os pulos de gatos, pegadas de galinhas, voos de pássaros, passos de tartarugas, rastros de cobras, como assim encontrei nas vivências negras paulistanas. Nas dimensões horizontais da cultura, aos pés dos Arranha-Céus, os sambas, carnavais, vissungos e orixás se tornaram expressões culturais de resistência quanto se trata de arte e música popular. A cultura negra se consolidou no Brasil, tendi o negro instituído de forma plástica no campo das artes, música, festa, no mundo afetivo-sexual, culinária, vestuário, poesia e religião, um amplo repertório de linguagens e resistências culturais[2].

O vigor da cultura negra se aquilo que Muniz Sodré chamou de “irmandade sub-nacional”. Uma experiência particular e descoincidente ao padrão hegemônico da branquitude que se expressou como “marca do paradigma civilizatório africano” para lidar com a sociedade global. Essa irmandade pode ser concebida dentro da perspectiva de uma ética comunitária definindo o que o mesmo autor afirma ser o “humanismo prático” negro.

As micro-áfricas em São Paulo se constituíram como expressão desse projeto, retendo e reelaborando (naquilo que foi possível) elementos vitais dessa ética comunitária. A expressão “pequena África” empregada por Roberto Moura, foi utilizada para pensar esta experiência na cidade do Rio de Janeiro. O que proponho no meu texto é refletir sobre as micro-áfricas em São Paulo e que, discrepante à tese do Moura, não estiveram circunscritas a um ou outro espaço, mas espalhadas por toda a cidade.

Geraldo demoliu o clichê que afirmava ser São Paulo o túmulo do samba. Ao se negar à ilustração, como sua mãe desejara ao querê-lo médico, foi a memória surpresa no arquivo sonoro da cidade, para além de Adoniram Barbosa. Sendo assim, ele foi o ponto de fuga, a desobediência, o inusitado, a surpresa suspeita diante do ímpeto sedutor da civilização urbana e metropolitana; percorreu o caminho úmido e quente não capturado pela impermeabilização do espaço e da alma; driblou o ambiente cinzento das fábricas, da disciplina performática dos negócios e serviços, da irrealidade tecnológica. Viu no samba a dança da alma. Fez do samba o antídoto ao enlouquecimento lento instituído pela modernidade paulista. Recusou o nada, preferiu o tudo. Driblou a narrativa pivô que insiste em silenciar as memórias sonoras paulistas e triunfar apenas os ruídos de fábricas, automóveis e outros sons urbanos.

Na memória do samba em São Paulo, “Seu Geraldo” ou “Geraldão da Barra Funda”, como assim o chamavam, está registrado como o músico corresponsável pela instituição do samba paulista. É admirado, como assim pude perceber no ensaio do bloco de samba Quilombo do Educandário[3], quando perguntei a um passista quem era Geraldo Filme. Em seu rosto abriu-se um sorriso e uma mistura de respeito e alegria que respondiam a minha pergunta. Ali percebi a importância de Geraldo Filme como uma memória a ser reconstruída e preservada.

O contato com sua obra e com sua imagem me moveu em direção aos vestígios e rastros de memórias africanas que foram reelaboradas na vida dos negros paulistas. É bom que se diga que nunca pretendi buscar uma pureza africana. Não pretendi também com esse termo propor uma visão essencialista, racialista ou de busca de raízes originárias e puras. Buscar uma pureza africana não tem sentido algum no mundo contemporâneo, já que a experiência da diáspora negra e do Mundo Atlântico remapearam valores, saberes e fazeres. A zona do Atlântico possibilitou a formação de redes de contato entre diferentes Áfricas, Europas e Américas, constituindo uma teia multifacetada onde o Atlântico Negro expandiu-se na Modernidade. Sua expansão pode ser considerada como dissenso, contraponto, resistência à expansão da Europa, mas também como uma vivência negociada, dado os diferentes campos de forças nas áreas Atlânticas sob a hegemonia europeia. As áfricas foram pensadas desse modo, como ressignificação da diáspora e seus desdobramentos. É mais uma metáfora que homenageia do que algo que busque uma memória contínua e regular. Termos como contribuição, influência e continuidade africana, além de desgatados, não respondem a mais nada. São verdades mortas. O que me interessa são as conexões, injunções, tensões e negociações estratégicas.

A conexão entre samba, Geraldo Filme e os negros paulistas com as Áfricas não é automática e nem mecânica. O termo Áfricas propõe pensar que a África não é um território homogêneo. Ao contrário, há diferenças entre as culturas, os tempos históricos e os povos que a habitam. Nesse sentido, há uma diversidade de Áfricas que multiplicam as memórias que lá foram e são vividas. O termo “África” apareceu no texto no singular e no plural. Ambas as possibilidades devem ser consideradas, pois a historiografia que trata dessa temática considera os dois conceitos viáveis para a compreensão das memórias e culturas de suas populações. E, ao longo do texto, utilizei o termo “Áfricas” com “A”  maiúsculo para tratar do continente e suas populações, o que difere do termo “áfricas” com “a” minúsculo por se tratar do conceito que explica as vivências e memórias negras em São Paulo.

O que percebi na experiência social de Geraldo Filme e suas músicas foram sinais dessa conexão que se manifestaram como traços de uma memória africana acessada e recomposta entre os negros através dos saberes orais-acústicos em torno das relações de família, amizade, trabalho e música, salões de dança, cordões carnavalescos, escolas de samba, festas e religiosidades. Do lado de cá do Atlântico, as micro-áfricas manifestavam-se nos ritmos, vocábulos, cantos, performances, que foram recuperados nos fragmentos de saberes e fazeres, possibilitando a reconstrução da experiência social de Geraldo e dos negros paulistas na cidade de São Paulo. Os fragmentos dessas memórias que ficaram como registros das experiências foram vividos em certos espaços da cidade por onde o músico circulou, como o Bixiga, Barra Funda e Liberdade. Costumes e laços sociais construídos em torno do samba, do carnaval e da vida privada.

Os estudos sobre as memórias negras no século XX são uma tarefa em construção. No que diz respeito às práticas musicais, já existem reflexões historiográficas que se propuseram a problematizar quais foram os caminhos escolhidos, os desejos e as intenções que a população negra viveu em São Paulo nesse século. Tais estudos mapearam, entre o pós-abolição e as décadas de 1930 e 40, suas novas formas de sociabilidade, como a vivência em rodas de sambas, a instituição de cordões e escolas carnavalescas, a frequência a salões de dança; bem como experiências em torno de uma imprensa negra e organização política como a ocorrida como Frente Negra Brasileira. Trataram-se de estratégias para resistir, negociar e estar culturalmente na cidade[4]. A partir da década de 1950 essas atividades culturais, sociais e educacionais continuaram sendo as organizações nas quais  os negros paulistas concentraram suas atenções e ações para reivindicar direitos, igualdade social e sua herança cultural negro-brasileira[5].

Reconstruir a memória musical de Geraldo Filme e suas relações de sociabilidade permitiu perceber uma sociedade e uma cidade com marcas dos negros paulistas, apesar das políticas de higienização do espaço urbano, da industrialização, da racionalização da governança política e da economia. Por entre o mapa da urbanização e metropolização emerge uma cidade com traços da vivência desse grupo nos costumes, gestualidades, cantos e nos espaços urbanos.

A memória de Geraldo se insere nessa perspectiva de análise para compreender suas práticas sociais em diálogo, conflito e mistura com outras experiências culturais na cidade. Isso posto, o texto não se tornou prisioneiro de uma visão culturalista, que deseja encontrar em tudo uma herança africana intacta, original e autêntica. Nem mesmo de uma visão materialista, na qual nós negros reagimos às formas de dominação no espaço urbano às vezes sem muita consciência dos seus atos, nos impedindo de nos tornamos sujeitos de nossa própria história.

A reconstrução de sua memória se insere na perspectiva historiográfica que atenta para as práticas vividas nos microprocessos sociais, o que pode iluminar contextos e estruturas maiores que se fizeram com as formas de viver dos grupos negros na redefinição de seus valores culturais no espaço urbano. Tais formas de viver desvinculam-se de datações oficiais estabelecidas que tiveram no movimento dos grupos políticos e na dinâmica industrial os marcos instituídos de compreensão das histórias da cidade. As micro-áfricas[6] paulistanas expressaram sociabilidades e sensibilidades, estiveram inseridas também nos movimentos sociais que compuseram o ritmo de transformações da cidade com suas múltiplas temporalidades e experiências.

A música e a experiência de Geraldo Filme sofreram impactos, resistindo em certos momentos e, em outros, se modificando de acordo com as imposições políticas, econômicas, ideológicas, urbanas e industriais da cidade. As micro-áfricas compõem um sentido de história que se fez e se moveu muito em função de um modo de pensar e estar negro na cidade, que penetrou os diversos fazeres e saberes da vida cotidiana. Vida essa que se fez não como o desenrolar dos dias, da repetição monótona dos acontecimentos; ao contrário, como tensões e conflitos sociais. Um cotidiano que foi vivido com as construções, transformações ou demolições de culturas, sob uma multiplicidade de tempos e experiências sociais[7].

Com o olhar atento aos fragmentos, pormenores, das manifestações negras é que pude observar uma temporalidade histórica e experiências vividas. Com essa opção teórica e metodológica pude pensar a narrativa histórica de Geraldo Filme, revelar fragmentos de sua vida e alma, dos dilemas, dores, alegrias, prazeres, expectativas e de paixão intensa e incontida pelo samba. Revelou ser um homem sensível às questões ligadas à experiência vivida pelos negros.

Reconstruir sua memória foi uma tarefa para a qual pouco me vali de materiais estatísticos: não há números, tabelas ou dados. O que há são documentos fílmicos, imagéticos, sonoros, orais e escritos que, analisados, revelaram um humano com seu mundo público, mas também com seu mundo de dentro, íntimo e privado. Com a documentação emergem retalhos da sua memória que ficaram como vestígios, já que a apreensão do conjunto total e absoluto do que fora é improvável e impossível. Sendo assim, os vestígios que ficaram de sua memória sugerem o menino que viveu lembranças do tempo da escravidão dado o contato com a avó; o filho de Augusta e Sebastião; o marido de Alice de Souza e o pai de Ailton de Souza; o sambista fundador de escolas de samba como a Paulistano da Glória, nos anos 40; o compositor de sambas-enredo para as escolas Unidos do Peruche e Vai-Vai nos anos 50 e 70; o homem ligado ao universo do Teatro e das artes, como assim ocorreu nas relações de amizade com Plínio Marcos e Solano Trindade; o sambista de voz grave e intimista, com sua “cuspidinha de lado” e seu sorriso aberto, do orgulho em ser negro; opositor à ditadura militar e ligado ao Partido Comunista do Brasil; aquele que brigou com a profissionalização do carnaval paulista e a ingerência dos poderes municipal e midiático a partir de 1968; o leitor que sempre acompanhado de uma bolsa a tiracolo guardava livros de literatura brasileira e estrangeira; o sambista-compositor de músicas como “Silêncio no Bexiga” e “Vai no Bexiga pra Ver”, que instituíram um arquivo sonoro para o samba paulistano.

[1] Sevcenko,Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole, p. 19.

[2] SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. Petrópolis, Vozes, 2015.

[3] Esse bloco não chegou a desfilar nos carnavais,  ficando restrito às rodas de samba que ocorriam aos finais de semana na Cohab Educandário nos anos 90.

[4] Brito, Iêda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência cultural, 1986; Moraes, José Geraldo Vinci de. Metrópole em Sinfonia: História, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30, 2000; Moraes, José Geraldo Vinci de. Sonoridades Paulistanas, 1989; Rolnik, Raquel. Territórios Negros. Uma História; Silva, José Carlos Gomes. Negros em São Paulo: espaço público, imagem e cidadania, 1998; Santos, Carlos José Ferreira dos. Nem Tudo era Italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915), 1998; Wissembach, Maria Cristina. Ritos de Magia e Sobrevivência: sociabilidade e práticas mágico-religiosas (1890-1940), 1997; Wissembach, Maria Cristina. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível, 1998. Todos esses estudos apresentam formas de como os grupos negros resistiram culturalmente na cidade à imposição de uma urbanidade que foi sendo gestada como dominante e como projeto hegemônico que tentava apagar as dissonâncias culturais ligadas às práticas populares.

[5] Andrews Georg Reid. Negros e brancos em São Paulo, p. 294-295, 1998; Bastide, Roger e Fernandes, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo, 1971; Bastide, Roger. Brasil: Terra de Contrastes, 1968.

[6] Moura, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro, 1983. A expressão utilizada por Roberto Moura foi pensar a pequena África na cidade do Rio de Janeiro de modo singular. O que proponho no meu texto é refletir sobre as áfricas de modo plural a partir de São Paulo e que não estiveram circunscritas a um ou outro espaço, mas espalhadas por toda a cidade.

[7] Thompson, E. P. Apud: Fenelon, Déa Ribeiro. E.P. Thompson- História e Política, Projeto História 12, São Paulo, 1993, p. 81.


Amailton Magno Azevedo, músico e Professor do Departamento de História e do Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC/SP. Possui pós-doutorado pela Universidade do Texas /EUA e pela Universidade de Coimbra/Portugal.

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