Sobre a confissão de homicídio no Big Brother Brasil 2015

“O carioca Luan Patrício, de 23 anos, afirmou ter matado um menor de 16 anos no Complexo do Alemão, em 2010, enquanto servia o Exército. Na ocasião, Luan integrava o 8º Grupo de Artilharia que ocupou as favelas da região. O Exército nega que tenha havido qualquer morte em confronto com esta unidade.”

Por José Antônio Gerzson  Do Blogueiras Feministas

Na maior rede de televisão aberta do Brasil há um programa que simula uma espécie de laboratório humano em que a popularidade garante ou impede a permanência do personagem. O objetivo é permanecer no programa. O personagem conta — no ar — que executou uma pessoa. Percebam: ele não poderia contar que executou a mãe. Ele não poderia contar que executou um inimigo pessoal. Ele não poderia contar que executou um desconhecido no shopping. Existe um contexto específico que autoriza a confissão deste homicídio, porque não é esperado confessar um homicídio para milhões de espectadores.

A lógica que autoriza a confissão — ou mesmo invenção — deste homicídio é bastante simples: algumas pessoas podem ser mortas. É por isso que algo aparentemente tão impressionante como confessar um homicídio em rede nacional é utilizado como instrumento de popularidade. Não é apenas uma confissão. É uma confissão que visa popularidade. E a confissão que visa popularidade é a execução de uma pessoa. O assassinato como instrumento de popularidade. Mas não qualquer assassinato, um assassinato onde o personagem exercia uma função pública.

O assassinato como função pública, como função do Estado. É uma técnica de neutralização bastante simples: aquele sujeito merecia morrer, então eu posso confessar. Não há processo, não há inquérito, não há registro. O homicídio não está formalizado em nenhuma agência estatal, justamente porque não precisa. Há uma autorização tácita para execução de tipos sociais específicos que é tão óbvia que legitima uma confissão pública.

O homicídio como criação do personagem tornará ainda mais transparente o contexto político-criminal: se não houve a execução, então deveria ter acontecido, porque é o esperado. O personagem confessa como forma de preencher a função destinada pelo Estado ainda que o assassinato não tenha acontecido. E sem burocracia.

É este imenso oceano de sangue que o garantismo não alcança, porque não é preciso formalizar nada para matar alguém, basta que o Estado seja o responsável. Como instrumento estatal, o homicídio está legitimado. Não há como garantir coisa alguma, não há vigência constitucional na guerra. É este imenso oceano de sangue que o gerencialismo de esquerda considera um “processo”, um “trajeto” rumo a algo que simplesmente não importa, porque nada pode ser mais importante do que a permanência do homicídio como função de Estado que sequer precisa de formalização.

Foi nisto que que o personagem apostou para se tornar popular: executar como função pública em um local específico — o complexo do alemão. Essa hiper-realidade que salta da tela com uma naturalidade impressionante fala muito sobre democracia contemporânea, garantismo penal e gerencialismo de esquerda. Fala tanto quanto um choque elétrico na vagina ou a inserção de arames no pênis de torturados em um porão do DOPS. Fala tanto quanto jogar corpos de aviões ou sequestrar crianças. E de novo, com amplo apoio da população civil. Um governo que não parta deste pressuposto já perdeu contato com qualquer semblante de esquerda.

Não vejam o personagem como um alucinado, vejam ele como alguém tão lúcido que escancara um genocídio que vai matar alguém hoje e vai matar outro alguém amanhã. E depois de amanhã. Vai estuprar, vai sequestrar. Preferencialmente negros, preferencialmente pobres, preferencialmente mulheres. E geral discutindo a Indonésia.

Autor

José Antônio Gerzson Linck é educador e pesquisador no campo das ciências criminais. Não acredita no Estado Democrático de Direito e crê que não há mais diferença entre academia e burocracia. Elegeu a sala de aula como o espaço para aprender e compartilhar emancipação.

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