No dia 20 de novembro do ano de 2020 participei, a convite da Thalita Pinho (assistente social e professora da FPO), da mesa que dá título a este texto, compartilhei fala com as queridas Valéria Lourenço (escritora e professora do IFCE-Crateús) e Patrícia Matos (pretagoga na COPPIR-Fortaleza).
Divido com vocês a minha fala.
Esta parece ser uma informação muito pessoal. Mas tal informação, aparentemente “confidencial”, não é nada privada. (Grada Kilomba)
Quero iniciar considerando acerca do título desta mesa – Tecendo histórias e poemas: a consciência negra na educação – título poético, carregado de força, de sentidos. Tem um sentido de nós, mulheres negras, estarmos em espaços que nos foram negados: literatura, invoco Maria Firmina dos Reis; escola, invoco Bernardina Maria Elvira Rich. Tem um sentido de contar nossas histórias, de sermos referências positivas de dedicação, trabalho, intelectualidades, sensibilidades, belezas e tudo de bom e bonito que nós, pessoas negras, temos e ofertamos ao mundo. E essencialmente, tem o sentido de gerar fissuras nas pilastras que sustentam o racismo e o patriarcalismo das nossas instituições e relações interpessoais.
Eu sou um corpo
Um ser
Um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar
Eu sou a minha própria embarcação
Sou minha própria sorte (Um corpo no mundo, Luedji Luna)
Eu sou a caçula dos 12 filhos que meu pai José – um serrano, e minha mãe Raimunda – uma sertaneja, tiveram e criaram com suor, lágrimas e risos. Um povo preto orgulhoso de sê-lo, confiante na sua essência, insubmisso aos desmandos dos patrões. Que apanharam por serem pretos – mas que nunca, jamais baixaram a guarda ou se esquivaram de estar onde quer que quisessem. Me contaram essa história e eu acredito nela.
Quando cheguei em casa era 22:30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido. (Quarto de despejo – diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus)
Eu sempre gostei de histórias, meus pais eram exímios contadores de histórias de trancoso, de romances, de cordel… contam-me que ficávamos à luz da lamparina debulhando milho, os adultos contando histórias e eu atenta, ouvindo, como se compreendesse tudo! E devia compreender mesmo. Na minha lógica de criança, certamente, tudo era grande, incrível e maravilhoso – mania que carrego até hoje.
Depois vieram os livros, as novelas, os livros, os filmes, os livros, o teatro, os livros, as artes em geral e os livros… eu sou exótica, amo os livros, os romances, a poesia. Faço versos, como diz Elisa Lucinda, da poeira do cotidiano, cozinhando, costurando, sangrando. Faço versos porque sinto falta do beijo do homem que amo. Faço versos, às vezes, contos, crônicas porque me indignam as insjustiças sociais, as violências que meu povo negro e originários sofrem, que nós mulheres sofremos, e tantas outras violências que me assombram.
Escrevo porque não aguento um dia inteiro de realidade. Escrevo porque vivo a observar a vida e tudo que a entremeia e me pulsa e eu pulso a vida e isso me dá motivos para dizer o que penso, o que sinto – sorte a minha alguém acreditar que isso é literatura. Pra mim, sou só eu sendo. Sinto que a escrita é lugar que me habita, que habito, que é matéria de salvação pro meu corpo de mulher preta, pro meu coração de mulher latina, sertaneja.
não sou uma mulher do lar da rua
sou de todos os lugares sons cores credos
por gostar de batom vermelho cueca salto alto
sou líquida densa opaca cristalina
toda inquietação desejo
sou não sou puro suor sangue puro
ai o que sou
ser ou não ser é dúvida demais pra mim
nunca serei simoa dandara lélia chica teresa nunca
serei todas nunca serei eu
não sou mesmo uma mulher difícil fácil
nem sabia mesmo que era mulher
até me ordenarem fechar as pernas
pra não mostrar a calcinha
nem sabia mesmo que era preta
até me gritarem na rua
pra prender os cabelos
e é nesta uniforme contradição
que me defino defendo faço o laço do dia
queimo o mamilo ao sol grito de prazer
e visto minha alma de pureza e vento
Aos dezessete anos, um emprego, o primeiro, arranjado por um tio, permitiu que ela viesse para a capital. A vida seguia no ritmo acelerado de seu desejo. Trabalho, trabalho, trabalho. O dia entupido de obrigações. A noite festejada por encontros de rápidos gozos. Os amores tinham de ser breves. Cursos, estudos somente aqueles que proporcionassem efeitos imediatos. (O cooper de Cida IN Olhos dágua, Conceição Evaristo).
Eu me considero uma pessoa de sorte. Nasci em uma família “estruturada” e como dizem minhas irmãs: na época das vacas gordas. Na infância e adolescência nunca precisei ir à roça, cuidar de casa, nunca pus lata d’água na cabeça, deixar minha casa para trabalhar em outras casas. Sempre tive apoio, carinho, atenção, condições materiais para ter o necessário para uma vida digna. Fui incentivada a estudar, me foi dada essa condição. Eu tinha tempo, força, energia e gana para aprender – mamãe era professora, o que me proporcionou ter livros por perto. Tive sorte.
Embora a escola tenha sido/seja um espaço violento, sim, a escola também é espaço de violências para as mulheres, negros, LGBTQIA+ e tantos outros – eu amava/amo estudar, aprender, amo as escolas (amor freiriano). Os insultos por causa do cabelo, da cor da pele me incomodavam, sempre incomodaram, mas nunca foram maiores que minha língua grande, era desaforada; que meu esforço de ser uma das melhores, porque sentia que eu precisava ser muito boa; de me aproximar das professoras em busca de apoio, defesa – e isso me cansava muitas vezes, e me cansa ainda hoje quando, sem perceber, estou na busca intensa de provar que eu tenho condições de estar ali, de ocupar os lugares. E faço isso porque o outro me cobra isso, porque a estrutura racista, machista e misógina, das relações culturais e institucionais, me cobram isso – me violentam. E se você me acha exagerada é porque você nunca passou nem um dia vestida com a minha pele, nem uma hora construída com a história de submissão e invisibilidade que impuseram ao meu povo, nem um minuto de racismo estrutural que permeia nosso país e mata a juventude negra.
Meus pais me deram as oportunidades para que eu pudesse escolher ser o que eu quisesse ser. Não foi o Estado brasileiro quem me deu. Nunca tive oportunidade de cotas, não tive esse direito porque elas só chegaram depois. Tudo o que conseguimos foi graças as lutas dos movimentos negros – homens e mulheres que deram a vida para que eu pudesse acessar escola, hospital, cultura, lazer… ter feito faculdade, pós-graduação, passar em concurso público, publicar livro, ter casa pra morar… Não foi meritocracia, não mesmo. Eu consegui chegar nesses espaços porque meus irmãos e irmãs, meus pais, meus ancestrais tiveram que trabalhar muito, que abdicar de seus sonhos para que hoje eu pudesse ser e estar. Nada de meritocracia. Meritocracia é uma falácia, é uma mentira, é a ocultação das injustiças sociais, das desigualdades econômicas e culturais, a culpabilização dos marginalizados pelo fracasso. O fracasso não é nosso, é das políticas públicas incipientes, da burguesia e classe média brasileira, do medo que têm de perderem suas regalias, seus roubos. Por isso querem nos manter no lugar da senzala – mas nós somos grandes, somos maiores que tudo isso e vamos continuar lutando como fez Luiza Mahín, Tereza de Benguela, Adelina Charuteira, Tia Simoa e tantas outras.
Sou mesmo uma mulher preta, e que sorte a minha, quantas ancestralidades carrego, quantas referências de luta e de vidas eu tenho. Eu queria ser professora para mudar pessoas, para salvar minutos, queria ser igualzinha a minha mãe!
Através de minha janela
vejo outras janelas
Que dão pra mundos além de mim, além de minha mãe
Que dorme alto, sonhando com sonhos já esquecidos
E acorda cedo, arruma o cabelo e espera o leiteiro
Com seu riso de lábios finos encanta cada menino que passa pra escola
E adota todos os gatos da rua
Minha mãe é uma janela aberta para a vida, para o ser humano
É uma mulher tão grande que extrapola sua altura
Que extravasa sua alma
É uma daquelas mulheres pequeninas que carregam o mundo nas costas
Que agradecem ao Deus do céu pelos fardos que lhes são verdadeiras dádivas
Minha mãe é daquelas mulheres que estão em extinção
Nem por isso lamento
Ela me diz baixinho com seus olhos rasgados
“crer é o melhor remédio para sarar todas as dores e dúvidas “
Feito um caracol ela desfila pela casa, pela rua
E essa sua paciência se desenrola pelos meus dias
E me enerva, e me distrai das coisas ruins do mundo
Porque só ela, na sua perfeição de mãe
Consegue me fazer ver além das janelas
E me leva aos mundos mais mansos que posso ir
Mundos que só Maria pode me levar
Porque nem a Deus foi ensinado esses caminhos.
Durante algumas semanas antes de o departamento de Inglês de Oberling College decidir me efetivar como professora, fui assombrada pelo sonho de fugir, de desaparecer, até mesmo de morrer. O sonho não era uma reação ao medo de não conseguir a estabilidade no cargo. Era uma reação à realidade de que eu ia conseguir a estabilidade. Eu tinha medo de ficar presa na academia para sempre. (Ensinando a transgredir, bell hooks)
Ah! A estabilidade profissional, financeira! Passei em concurso federal. Aí, eu sou professora formadora de professor(a). Antes atuei no Ensino Fundamental, em projetos sociais, em oNG’s, grupo de teatro e tantos outros espaços. Mas eu tinha fome de ser e estar na sala de aula formando professores, sempre tive. Quis me preparar para isso. Porque Acredito na educação não como espaço de redenção das mazelas sociais, mas como um direito de todo brasileiro, um bem que não pode ser negado, tirado, fragmentado. Acredito na escola como espaço de construção de sociabilidades, de afetividades, de conhecimentos, de produção de humanidades, de acolhimentos, de emancipação de pessoas. Espaço do contraditório, da diversidade, de estar sempre em construção, nunca estar pronto, que boniteza saber-se sujeito em processo de ser sempre melhor pra si, pro outro e pro mundo.
Nunca fui assombrada pelo sonho de fugir, nunca fugi da minha responsabilidade enquanto educadora preta, do meu compromisso de uma educação decolonial e emancipadora. Nunca quis fugir, nunca fugirei, mesmo que me olhem atravessado, que façam muchochos, apesar disso, reconheço os sorrisos e os acolhimentos que fortalecem a minha/nossa militância cotidiana.
Eu estou vestida com as roupas e armas de Zumbi e Dandara!
sinto-me imensamente inspirada, impotente – confusa
porque aqui dentro sou um caos caçando uma ordem secreta
porque quero comer linhas, caminhos tortos
expandir-me
e
depois voltar a um lugar
que não sei onde é
mas já visitei em sonhos
porque quero ser uma pessoa sem chão, sem limite, sem cor
porque quero
e
às vezes
quero querer
sem precisar sabê-lo
Karla Gomes
Pedagoga, mestra em Avaliação de Políticas Públicas; professora de Fundamentos da Educação no IFCE campus Crateús-CE, poetisa, contadora de histórias, cineclubista e agitadora cultural.