Ialorixá abre terreiro de candomblé para roda de samba, que acontece sob preceitos ancestrais

Enviado por / FontePor Maria Fortuna, O Globo.

À frente do 'quilombo urbano' Yle Asè Egi Omim, cravado no alto da Floresta da Tijuca, Wanda d’Omolú orienta o batuque pela 'dinâmica preta da educação'

O iluminado que encarar os 61 degraus da escada íngreme que desemboca numa clareira em meio à Floresta da Tijuca não vai se arrepender. Encontrará uma das rodas de samba mais especiais do Rio de Janeiro no momento.

E uma oportunidade de fazer isso será no próximo dia 3, quando acontece a primeira edição 2023 da Igbo Ijo. Batizado com uma expressão em iorubá que significa “dançando na floresta”, o batuque ecoa numa casa cravada no alto da Rua Joaquim Mamede, em Santa Teresa.

A roda Igbo Ijo, que significa “dançando na floresta, em iorubá (Foto: Divulgação/ Jaime Miranda Santos)

Aquele não é um endereço qualquer. A placa endurada no portal da entrada, onde se lê “Yle Asè Egi Omim”, dá uma pista. Após passar pelo assentamento de Exu, seguir o caminho de espadas de São Jorge e pisar no terreno de terra batida, o visitante já não tem mais dúvidas: está dentro de um terreiro de candomblé.

É nesse “quilombo urbano”, orientado pela ialorixá Wanda d’Omolú – e onde moram vários de seus filhos de santo, que mantém o espaço com capricho -, que a roda rola solta. Ou melhor, com uma certa dose de cerimônia. É que ali a coisa é séria. Se desenrola sob preceitos ancestrais. O que isso quer dizer?

– Respeito e atenção à fala do outro, à mensagem que está sendo passada. Ninguém fica interrompendo ninguém. Um puxa o canto, o instrumento entra e, aí, o povo interage. Não tem essa de ficar conversando ou cochichando durante a roda – explica Wanda, 63 anos de idade e 38 de serviços prestados como ialorixá.

O cantar é olho no olho e repleto de consciência diante da força das mensagens dos “sambas políticos”, define Wanda, selecionados a dedo para serem executados ali.

Jessica Lanny bate o tambor e o público acompanha na palma da mão (Foto: Divulgação/ Jaime Miranda Santos)

– São músicas que nos colocam para cima, calcadas na ancestralidade, naquilo que nossas avós contavam. Um repertório que nos mobiliza emocionalmente a brincar, energizar, reexistir, se acolher e nos sustentar politicamente com firmeza e como movimento coletivo pela vida – diz ela, citando “Um sorriso negro”, de Dona Ivone Lara, como exemplo.

modus operandi que se desencadeia na roda é como no candomblé, razão de existir daquele espaço: ogãs recebem a intuição espiritual para dar o primeiro sinal do ponto que será cantado, em seguida, os atabaques entram em ação para, só depois, os filhos de santo fazerem o coro.

– É a dinâmica preta da educação, em que o mais velho se posiciona cantando e o povo responde. Experimentamos repassar na roda aquilo que o sagrado nos apresenta como educação. A presença do matriarcado, da mulher preta e do coro feminino é também algo que faz diferença – afirma Wanda.

Samba de roda que se preza tem batuque, bailado e bastante bebida. Claro que sempre tem também alguém que não segura a própria onda… Nessa hora, o coletivo que norteia o terreiro faz o trabalho de contenção de boa, sem estresse.

Palma da mão

A cantora Nina Rosa – que junto com João Macumba, Tainá Brito, Junior Silva, Jessica Lanny, Leo Rosário e Rogério Família formam o grupo que comanda o pagode -, conta que soltar a voz num lugar de axé exige um compromisso maior.

– Parece que tem uma responsabilidade com os orixás, as entidades. Para quem é de axé como eu, influencia até na roupa com que vai sair de casa – afirma Nina, filha de Xangô e Oxum. – A energia da mata é muito forte. E junta com a do tambor do nosso samba, que é fundamental para fazer música em roda.

Ela também cita uma canção que não pode faltar no samba do terreiro, “Por um dia de graça”, de Luiz Carlos da Vila. Diz assim: “Em cada palma de mão, cada palmo de chão/ Semente de felicidade/ O fim de toda a opressão, o cantar com emoção/ Raiou a liberdade”.

– É um samba que diz mais ainda nesse local, é um brinde à felicidade e às lutas, um afago a todo os sofrimentos que sentimos como pessoas de axé e do samba, histórias cercadas de opressão.

‘Pretinhosidades’

A roda Igbo Ijo é uma das “pretinhosidades”, como classifica Wanda d’Omolú, que acontecem da porta para dentro do Yle Asè Egi Omim. O lugar – que existe em harmonia com a fauna e a flora ao redor e onde se louva o sol, a terra, a água e o ar em rituais diários -, também abriga um centro cultural de tradições afro-brasileiras.

Naquele pedaço de chão, são realizados aulas e cursos que procuram consolidar ideias e ações que valorizem os feitos dos povos tradicionais das matrizes africanas.

– O sagrado nos fortalece para realizar entretenimentos, como o samba, rodas de jongo e maracatu, além da parte dedicada à educação, com ciência e geografia de território – explica a sacerdotisa do candomblé.

Filha de Omolú e Oxum, Wanda também é jornalista, educadora com ampla experiência em trabalho social com jovens e populações vulnerabilizadas. Seu antigo terreiro ficava na Ilha de Guaratiba, mas em 2018 ela baixou no novo espaço com a família e filhos de santo.

— Trazer um terreiro de candomblé para o Centro do Rio num cenário de desrespeito aos cultos de matriz africana é um ato político. Este é um bairro ligado à ancestralidade, foi rota de escravos. Somos um novo quilombo, assim como as favelas.

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