A movimentação crescente de diferentes setores da sociedade pela indicação inédita de uma ministra negra para o STF (Supremo Tribunal Federal) tem a cautela como fator comum. A preocupação vem de um histórico de ofensivas contra mulheres, especialmente as negras, para ocupar cargos de poder no país.
Nos últimos dias, entidades jurídicas, ministros do governo Lula e um integrante do próprio Supremo se manifestaram publicamente a favor da indicação. A vaga será aberta com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, que completará 75 anos em maio. Lula, no entanto, afirmou recentemente que “todo mundo compreenderia” caso ele indicasse seu advogado, Cristiano Zanin —homem e branco.
A mobilização a favor de uma mulher negra na corte ganhou força nesta semana, em meio a manifestações ligadas ao Dia Internacional da Mulher, celebrado na quarta-feira (8).
Em entrevista publicada pela Folha, a professora da USP Fabiana Severi, especialista em direito e gênero, criticou a manutenção pela esquerda de listas sem mulheres e pessoas negras.
“Ter uma lista de homens brancos vindo do campo democrático é quase um insulto, porque sabemos que não é uma questão de falta de conhecimento jurídico, de capacidade e de nomes”, afirmou.
Como mostrou a Folha, em quase 40 anos de redemocratização no Brasil, a cúpula da República contou com 66 homens e só 4 mulheres. Especificamente no STF, só 3 mulheres —contra 26 homens— se tornaram ministras nesse período, nenhuma delas negra.
Na quarta, cem entidades do meio jurídico e movimentos lançaram um manifesto pela indicação de uma ministra negra. No mesmo dia, durante sessão do STF, o ministro Edson Fachin falou no mesmo sentido.
O magistrado, ao retomar julgamento no plenário sobre racismo estrutural em abordagens policiais, citou reportagem da Folha com relatos de juízas negras mencionando o caso de uma magistrada que precisava mostrar o crachá para acessar espaços exclusivos para juízes homens.
Os ministros Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Anielle Franco (Igualdade Racial) também se posicionaram publicamente a favor de uma mulher negra para o STF.
Na ocasião, Almeida disse que, apesar de estarem discutindo uma tese central sobre a questão racial no Brasil, não havia “nenhuma pessoa negra ou mulher negra discutindo a questão racial naquele plenário”. Depois, afirmou que uma ministra negra no Supremo “vai ser de importância fundamental, central, para que a gente comece a discutir a democratização dos espaços de poder no Brasil”.
Já Anielle Franco afirmou, em entrevista à GloboNews, que pretende pedir a Lula a indicação de uma negra ao STF.
Juízes que integram o Enajun (Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros), coletivo criado há seis anos para aumentar a presença de magistrados negros nas cúpulas do Poder Judiciário, também trabalham pela indicação de uma juíza negra de carreira, algo que dizem ser fundamental.
Além disso, Defensoria Pública e Ministério Público estudam nomes para a corte.
A articulação por mais representatividade é feita há anos pelos movimentos feminista e negro.
As principais barreiras são a falta de apoio em círculos de poder dominados por pessoas brancas e a necessidade de desconstruir um imaginário em que o notório saber jurídico, requisito constitucional para indicação, não é visto em uma mulher negra.
“O racismo institucional e simbólico faz com que mulheres negras sejam vistas como mulheres que exercem posições menos prestigiosas. Isso tem a ver com o nosso passado escravocrata recente que gera nas pessoas a noção de que essas mulheres não devem ocupar espaços de poder”, diz Luciana Ramos, professora de direito constitucional da FGV Direito São Paulo.
Juízes e advogados ouvidos pela Folha afirmam que conversas estão sendo feitas para avaliar o melhor momento de expor os nomes para a disputa ao STF. Eles afirmam que existe uma ofensiva contra nomes de pessoas negras tanto por setores da advocacia quanto por membros do Poder Judiciário e de políticos.
“Nós mulheres negras somos atacadas antes mesmo de poder colocar as nossas qualidades e expertise na mesa. O nosso receio é que essas mulheres indicadas recebam ataques desnecessários”, afirma Maria Sylvia de Oliveira, que assinou o manifesto representando o Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Flávia Biroli, professora de ciência política da UnB (Universidade de Brasília), afirma que os movimentos sociais aprenderam a construir redes de proteção para lidar com ofensivas.
“Quando essas pessoas estão em evidência e colocam em xeque o caráter racista dessas instituições de poder, elas sofrem ataques muito acentuados. Isso acontece com as mulheres e especialmente com as mulheres negras”, diz.
Biroli afirma ainda que é preciso estabelecer limites à violência política, conforme prevê lei sancionada em 2021, identificando autores e cobrando as plataformas onde esses ataques acontecem para que as candidatas não sejam atingidas.
Luciana Ramos (FGV) acrescenta que o racismo e machismo institucionais também afetam a permanência das mulheres nesses espaços.
“Temos um número de juízas que está longe do ideal e o preconceito que elas sofrem dos advogados, jurisdicionados e pelos próprios pares, particularmente na segunda instância, é brutal”, afirma.
Desde 1891, o STF teve apenas três ministros negros em sua composição (o último foi Joaquim Barbosa, que se aposentou em 2014), e apenas três ministras mulheres, duas em exercício: a ministra Rosa Weber, que preside o STF e se aposenta em outubro, e a ministra Cármen Lúcia. A primeira foi Ellen Gracie, no ano 2000.
A professora de direito e advogada Ecila Moreira de Meneses, integrante da executiva nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, um dos movimentos que articularam o manifesto, afirma que o histórico de ministros homens e brancos na corte criou um imaginário de que as vagas são para homens brancos.
“Mesmo que tenha duas mulheres no STF, isso ainda não significa representatividade em relação ao perfil da sociedade brasileira. Tivemos alguns ministros negros, eles saíram e essas vagas foram ocupadas por pessoas brancas. Não houve o cuidado em consolidar a vaga de uma pessoa negra. O que nós queremos é ampliar as vagas das ministras”, diz.
Segundo Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas, a entidade está engajada em pautar o debate, mas vai apoiar qualquer escolha do presidente Lula.
“Embora sejamos signatários do manifesto, o que nós queremos é que o presidente Lula considere no universo das possíveis pessoas, juristas negros e negras”, afirma.
Para Oliveira (Geledés), as mulheres negras vêm dando contribuições relevantes para que seja pensado um novo pacto civilizatório.
“Nós [mulheres negras] conhecemos bem a sociedade brasileira. Através das nossas lutas e proposições trazemos contribuições significativas para a promoção de direitos humanos no Brasil, porque nós somos a parcela da população que mais sofre o impacto dessas violações”, diz.
Ela afirma ainda que se o país pensa em avançar e desmantelar o racismo, para além de falar, é preciso que o Estado brasileiro, representado pelo governo Lula, tome atitudes. “Uma ação importantíssima é nomear uma mulher negra para o STF e sinalizar o real interesse do Estado e do sistema de Justiça de aderir a luta antirracista.”
Lígia Batista, nova diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, afirma que a indicação de uma ministra negra seria uma quebra de paradigma, porque o sistema de justiça brasileiro é historicamente racista e excludente.
“É fundamental que na corte suprema, o mais alto nível do Judiciário, possamos ter uma jurista negra, por entender, que do ponto de vista simbólico, essa representação nos ajuda a pensar em formas de superação do racismo e do machismo”, diz.