Ediane Maria (PSOL) não é apenas a primeira empregada doméstica a tomar posse como deputada estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo, mas também a primeira trabalhadora doméstica vítima de escravidão contemporânea a assumir o cargo de parlamentar.
“Fui escravizada como trabalhadora doméstica. Não enxergavam uma mulher, apenas o meu serviço. Eu só tinha direito a trabalho”, conta Ediane à coluna de seu gabinete na Alesp, ocupado após ter ficado em 20º lugar entre os candidatos mais votados no Estado, com o apoio de 175.617 eleitores. A posse da nova legislatura ocorreu nesta quarta (15).
O tema da escravidão contemporânea voltou a ficar em destaque nas últimas semanas após o resgate de 207 trabalhadores na produção do vinho de empresas como Aurora, Garibaldi e Salton, em Bento Gonçalves (RS).
“Eu era um objeto que não podia demonstrar sentimentos. Eu era a limpeza que fazia para eles. Uma limpeza silenciosa, que não podia sorrir, não podia ser engraçada, não podia reivindicar melhorias”, narra a deputada.
“Comecei a ficar com vergonha de pedir ajuda. Eu contava o que tinha que enfrentar e as pessoas me diziam que a vida é assim mesmo. Ou me ignoravam por ser negra ou pelo meu sotaque nordestino.”
Ela diz que chegou de Floresta, no sertão de Pernambuco, questionadora, falando muito, mas a cidade foi silenciando-a. Invisibilizando-a.
“Não tinha registro em carteira, ganhava bem menos que salário mínimo. Diziam que era assim porque não pagava aluguel, nem água ou luz”, lembra. A legislação, contudo, proíbe desconto da hospedagem do salário de trabalhadoras domésticas que moram no serviço.
Ediane explica que não conseguia gastar nem o pouco que ganhava. “Havia uma folga a cada 15 dias. E eu tinha parentes em Santo André [município da Grande São Paulo]. Mas, quando a folga chegava, eu estava tão cansada que não queria fazer nada. Eu trabalhava o tempo todo”.
Até que um dia os patrões disseram que iriam fazer compras, mas foram viajar e deixaram-na trancada na casa. Desesperada, ela conseguiu sair com a ajuda de outra pessoa que ligou para os bombeiros, que a resgataram. “Nunca mais voltei para lá”, diz.
A coluna consultou o auditor fiscal Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho e Emprego sobre o relato da deputada estadual Ediane Maria. De acordo com ele, “isso tem os indicadores presentes na caracterização de condições análogas à de escravo”. Ou seja, caso a denúncia chegasse hoje às autoridades, ela teria entrado para as estatísticas de resgatados.
Há 20 anos, quando isso aconteceu, o combate à escravidão contemporânea – que acontecia principalmente no campo – começava a chegar nas cidades.
O número de resgates de trabalhadores domésticas escravizadas só cresceu após a sociedade atentar-se para esse tipo de exploração. “A grande repercussão do resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano, no final de 2020, em Patos de Minas, fez com que as denúncias saltassem”, explica.
Em 2020, foram três resgatadas, em 2021, 31, e, em 2022, 31 novamente. A maioria mulheres e negras, como Ediane Maria – que viria a trabalhar como doméstica em outras residências após este caso.
Doméstica, mulher, negra, nordestina, sem-teto. E, agora, deputada
Ediane é a sétima filha de oito irmãos, filha de um feirante e de uma doméstica e babá – a hereditariedade mostra que, mais do que um emprego, no Brasil isso é uma condição a que estão submetidas mulheres pobres.
Veio para São Paulo para concluir os estudos, mas só conseguiu terminar o ensino médio em 2013 por causa do trabalho. Hoje com 39 anos, ela é mãe de quatro filhos – dos quais uma delas faz faculdade. Entrou em 2017 no MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), do qual se tornou uma das coordenadoras.
“Vim entender meu lugar na sociedade no MTST. Lá, eu soube que tenho direito a moradia, saúde e educação e poderia reivindicá-los”, afirma. “Mas lá eu também esbarrei com o preconceito, sendo chamada de vagabunda e oportunista por lutar por moradia ao lado de domésticas, pedreiros, trabalhadores de aplicativos.”
Para a deputada, estar na Assembleia Legislativa significa trazer à tona a realidade das trabalhadoras domésticas e dos sem-teto.
“Grupos invisibilizados e esquecidos, como eu fui. Aqui, tenho oportunidade de mudar as coisas. Só de estar aqui dentro, já estou mudando, porque essas pessoas esquecidas sabem que estão sendo representadas. Afinal, a gente carrega no nosso corpo e na nossa história um processo de escravidão que não foi resolvido.”
Ela vê a si mesmo como uma “abridora de portas” para que mais trabalhadoras domésticas participem da política.
“Vivemos em um país escravagista que tem que aceitar que tem uma trabalhadora doméstica neste lugar. Não haverá mudança em uma sociedade em que mulheres negras não possam dizer o que estão sofrendo. O processo de escravidão ainda não acabou, apenas mudou de forma.”
Trabalho escravo hoje no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.