Camila Moura de Carvalho: Intersecções de desigualdades e mobilidade social

O título que dá nome a este artigo é inspirado em um dos tópicos do programa da disciplina “Desigualdades Sociais Contemporâneas” que integra o curso de mestrado que iniciei recentemente em Lisboa. Trata especificamente das intersecções de desigualdades e mobilidade social. Entretanto,a fim de avançar nos debates sobre a condição da mulher negra brasileira, decidi fazer esse recorte e compartilhar aqui minhas reflexões, até porque tal tema me interpela subjetiva e objetivamente de maneira constante.

A título de ilustrar minha fala abro um parênteses para fazer uma declaração e contar uma pequena história.

A professora da disciplina, uma mulher branca, portuguesa, doutora em sociologia, dirigente sindical na área do ensino superior, é admirável tanto intelectualmente quanto como docente. Suas aulas nos envolvem e instigam.

Durante um debate sobre as causas das desigualdades a professora nos mostrava um modelo conceitual que ela havia desenvolvido em forma de “árvore”, para apontar diversas categorias que estavam nas raízes (causas) das desigualdades e que produziam os galhos (consequências). Entre as raízes estavam conceitos como idade, classe social, escolaridade, gênero, etc. Não havia a categoria raça.

Rapidamente uma colega preta são-tomense questionou de maneira enfática a professora sobre o porquê do modelo apresentado não considerar raça entre os fatores relacionados às desigualdades, uma vez que considera gênero e ambos tratam-se de construções sociais? A professora, visivelmente irritada, elevou o tom de voz para dizer laconicamente que a questão da raça não era pertinente no contexto europeu; que talvez o fosse no Brasil, não ali. Minha colega replicou dizendo que era sim muito pertinente e que não era necessário ir ao Brasil para tratar da questão racial, citou o exemplo das manifestações antirracistas na Inglaterra argumentando que esse debate também vinha sendo travado nas universidades. Tentando ser polida, acrescentei que a raça e o processo de racialização eram, aliás, produtos da cultura eurocêntrica, o que naturalmente estava se refletindo ali no campo acadêmico, numa espécie de epistemicídio, de apagamento da nossa ancestralidade e de tudo que nos foi tirado pelo sistema da escravidão, sob o falso argumento da neutralidade acadêmica. Interrompendo a parte final da minha fala, uma voz solene ecoou do fundo da sala dizendo: “só há uma raça: a humana”. Busquei a pessoa da voz. Era um homem branco, europeu. O debate encerrou-se logo depois daquele clichê.

Bem, com essa pequena passagem refleti muito sobre contradições, sobre estereótipos e sobre como é fácil para pessoas que integram os espaços de privilégios (mesmo aqueles supostamente progressistas) naturalizar, reproduzir e reforçar preconceitos, invisibilizando outras formas de contraposição que desafiem ou ameacem seu lugar nesses espaços. Pressenti que minha trajetória ali naquele lugar não seria tão confortável, mas necessária. É preciso dizer que também senti uma espécie de alento e pertencimento por estar numa sala com várias colegas negras e negros, em número muito maior do que já presenciei nas salas de aula do Brasil sem as cotas. Mesmo em silêncio, sinto que compartilhamos naquele momento um sentimento de diáspora africana que me nutriu com uma força que nunca havia experimentado.

Esse episódio me faz refletir também sobre o fato de que considerar a questão da raça ou da racialidade — articulada com as categorias do gênero e da classe — na base das causas da desigualdade, em uma sociedade como a brasileira, é absolutamente relevante e determinante para algum debate que se pretenda fazer sobre o tema.

A intelectual, professora universitária e ativista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw, desenvolveu o conceito de interseccionalidade em contraponto às teorias tradicionais feministas e antirracistas que, em sua ótica, eram reducionistas e insuficientes para explicar a experiência específica de discriminação da mulher negra.

Para Crenshaw, mulheres negras podem vivenciar opressão tanto em razão do gênero, quanto da raça, mas isso não necessariamente torna sua experiência homogênea em relação ao machismo experienciado por uma mulher branca e ao racismo vivido por um homem negro. Sugere assim a autora que essa experiência é ao mesmo tempo parecida e diferente, pois essas discriminações não se somam isoladamente mas produzem, pela sua combinação, efeitos específicos.

Por outro lado, correspondendo à complexidade das intersecções, estudiosos do tema das desigualdades enfatizam a sua natureza multidimensional.

Então, vamos à pergunta: sobre o que estamos falando, quando falamos de desigualdades? Desigualdade para quem?

Um estudo elaborado em 2018 pelaOrganização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) intitulado “O Elevador social está quebrado? Como promover mobilidade Social”, aponta que:

A confluência viciosa de oportunidades educacionais pobres, habilidades baixas e as perspectivas de emprego podem prender as pessoas em situações em que elas também são muito mais prováveis de estar expostasa riscos ambientais e àviolência. Como resultado desta desigualdade multidimensionalenquanto alguns indivíduos, cidades e regiões prosperam,outros ficam ainda mais para trás.”

De acordo com esse mesmo relatório, seriam necessárias nove gerações para que os descendentes de um brasileiro entre os 10% mais pobres atingissem o nível médio de rendimento do país. A estimativa é a mesma para a África do Sul e só perde para a Colômbia, onde o período de ascensão levaria 11 gerações.

Em 2018, apesar de representarem 54,9% da força de trabalho brasileira, negros ganhavam menos do que brancos. Segundo o estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” do IBGE, o rendimento médio domiciliar per capita de pretos e pardos era de R$ 934 naquele ano, enquanto no mesmo período, brancos ganhavam R$ 1.846, ou seja, quase o dobro.

Quando acrescentamos à raça o recorte do gênero, o fosso é ainda maior.

O estudo “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”, publicado em 2017 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que examina o período entre 1995 e 2015, ao analisar os indicadores de pobreza, distribuição e desigualdade de renda, mostrou por exemplo que no ano de 2015 o rendimento nacional per capita médio por sexo, segundo cor/raça era o seguinte: enquanto um homem branco recebia em média R$ 1.416,30, um homem negro auferia R$ 782,00. Uma mulher branca no mesmo período percebia um rendimento médio de R$ 1.389,50, ao passo que uma negra ganhava R$ 742,60.

Interessante que o mesmo estudo, ao analisar o indicador de educação, mostrou que mulheres negras possuem tempo de estudo maior em número de anos do que homens negros, mas essa superioridade é inversamente refletida no mercado de trabalho, tanto em termos de salário, como de posição profissional.

Como aprendi no transcorrer daquela aula (involuntariamente ilustrativa e reveladora), as desigualdades sociais contemporâneas são sistêmicas e cumulativas e se acentuam conforme os marcadores de desigualdades vão se combinando.

Desse modo, considerar a intersecção entre as categorias de gênero e raça, além da condição de classe assume relevância central quando pretendemos pensar sobre quais caminhos trilhar para que a mulher negra brasileira seja capaz de romper esse teto rígido e se beneficiar de uma mobilidade social ascendente.

Sabemos que esse déficit de mobilidade social que recai sobre mulheres negras se reflete também nas esferas públicas. Nossa falta de representatividade no âmbito dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário é o retrato institucionalizado do machismo combinado com o racismo que vem operando há séculos nossa sociedade.

É, portanto, necessário promover mudanças a partir de uma abordagem transversal que considere as categorias de raça e gênero como elementos determinantes de desigualdades de modo a possibilitar, por meio de políticas públicas e por iniciativas privadas, seu melhor enfrentamento em suas diversas dimensões.

A correção dessas iniquidades sociais a partir dos recortes racial e de gênero tem um valor intrínseco, mas principalmente tem a ver com a consolidação da nossa democracia e do nosso desenvolvimento social e econômico. É um debate interdisciplinar (político, jurídico, econômico)  sobre as desigualdades sociais contemporâneas, sobre economia do bem-estar de um modo mais amplo. É um debate multifacetado e que requer perspectivas plurais, onde todas e todos os envolvidos possam participar e ter voz efetivamente.

Camila Moura de Carvalho, juíza do trabalho no TRT-15, integrante da AJD e mestranda em Ciências do Trabalho e Relações Laborais/ ISCTE-IUL, Lisboa.

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