Casa de Machado de Assis, a ABL abre suas portas pra Joel Zito Araújo

Casa de Machado de Assis (1839-1908), a Academia Brasileira de Letras (ABL) vai se tornar nesta quinta-feira palco para uma inflamada reflexão sobre racismo, colorismo e todas as demais matizes da aquarela da exclusão, numa visita do diretor Joel Zito Araújo, diretor de “A negação do Brasil” (2000) para falar sobre representação e identidade do legado africano em nossa população. Com 31 anos de estrada nas telas, o realizador do premiado “Filhas do vento” (2004) foi convidado pela ABL para ministrar, hoje (27/6), às 17h30, o colóquio “O Negro no Cinema Brasileiro”. A palestra dele encerra o ciclo “Vozes d’África na cultura brasileira”.

A ABL, casa fundada por Machado de Assis, fica Av. Presidente Wilson, 203, Castelo. Em janeiro, o mineiro, nascido na cidade de Nanuque e reconhecido como um dos mais combativos documentaristas em atividade hoje no país, integrou a mostra Soul in the Eye, do Festival de Roterdã, batizada em referência ao filme “Alma no olho” (1973), de Zózimo Bulbul.

O evento holandês acolheu o sexagenário realizador e uma turma de jovens diretoras e diretores (Sabrina Fidalgo, Yasmin Thayná, Glenda Nicácio, André Novais Oliveira e outros). Lá, Joel Zito fez a primeira exibição mundial de seu mais recente trabalho, “Meu amigo Fela”, pelo qual ganhou o Prêmio Especial do Júri no festival de .docs É Tudo Verdade.

Ainda inédito em circuito, “Meu amigo Fela” investiga o legado do músico nigeriano Fela Kuti (1938-1997), um caldeirão multicultural, fervido no calor das ideias de Malcolm X, da urgência de compreensão da identidade africana e da vontade de expressar as raízes de seu continente natal sem o jugo dos colonizadores brancos europeus.

A revisão crítica da vida e da obra de Fela – construída a partir de uma jornada internacional do cineasta ao lado do escritor Carlos Moore, biógrafo do multinstrumentista por trás de LPs lendários do afrobeat, tipo “Why black man dey suffer”, de 1971 – é uma das vertentes de uma filmografia iniciada por Joel Zito em 1988. Uma trajetória audiovisual com os olhos bem abertos para os exercícios de exclusão do mundo, mas com os pés fincados na realidade de intolerâncias do Brasil.

Realidade que ele transforma ora em denúncia explícita (caso do febril longa “Cinderelas, lobos e um príncipe encantado”), ora em aulas de lirismo (como “São Paulo abraça Mandela”).
Na entrevista a seguir, ele dá ao P de Pop do Estadão uma prévia do que vai ser o debate da ABL desta quinta.

(Foto: Imagem retirada do site O Globo)

Que estereótipos ainda cercam a representação negra no cinema brasileiro? O quanto esses estereótipos esbarram no racismo?
Joel Zito Araújo: Eu creio que temos duas situações paralelas. As produções blockbusters e conservadoras tendem a repetir os estereótipos de sempre, com um pouco mais de sutileza. São produções em que consideram que a melhor representação do ser humano são as pessoas brancas. A melhor representação da beleza são as pessoas de características mais arianas, especialmente aqueles de cabelos e olhos claros. O negro e o indígena entram como o outro, às vezes, como exótico, às vezes, como ameaça, e, quase sempre, como representação da pobreza ou do Brasil profundo atrasado e pitoresco.  Mas nós temos uma nova geração de cineastas que busca fugir dos estereótipos tradicionais, de somente representar o negro como pobre, feio, subalterno, e marginal. Buscam a humanidade dos personagens negros, entendem a população negra como parte da maioria dos brasileiros, criam ou transformam seus protagonistas em personagens negros. Mas, nssas duas situações, creio que ainda persiste uma certa norma, uma certa ideia de que o natural é ter o branco como representação do ser humano comum, regular. Em que a classe média ou o ser humano mais sofisticado (com mais bagagem cultural) é branco. E a compreensão do Brasil como um país diverso do ponto de vista racial e cultural parece continuar sendo uma espécie de camisa apertada com o selo de “politicamente correto”. Como diz o sociólogo Muniz Sodré, a branquitude é o paradigma antropológico hegemônico, é como se a pele branca constituísse uma espécie de Ocidente absoluto.

Como você avalia a participação de realizadoras e realizadores negros na produção nacional hoje?
Joel Zito Araújo:  Cresceu muito na última década. Finalmente temos hoje um movimento de cinema negro emergente, criativo e combativo. Temos mais de uma centena de jovens, homens, mulheres, gays, transgêneros fazendo seus filmes. Muitos deles já passaram pelos seus primeiros longas, são reconhecidos por festivais importantes, nacionais e internacionais. A minha geração e a anterior… do Pitanga, do Zózimo… não está mais sozinha. Somos hoje um batalhão, com uma maioria de jovens criativos, e muitos uma originalidade sensacional.

Nestes tempos em que muito se discute o paradigma de “lugar de fala”, como ficam os filmes históricos sobre identidade negra que foram dirigidos por cineastas brancos, como “Quilombo”?
Joel Zito Araújo: A introdução do conceito de “lugar de fala” é fundamental. Não é apenas um selo de origem, é também uma forma de fazer quem é branco se posicionar diante de um país tão estruturalmente racista. Ele não pode mais esquecer o seu lugar e privilégios de origem. Mas isso não pode ser entendido como uma divisão do mundo do cinema em caixinhas, em estantes separadas. Todos nós temos direitos de falar do mundo do outro. Só não podemos mais ter a ingenuidade de que somos quem mais compreende o mundo do outro, apenas por sermos artistas bons, famosos, viajados ou com boa formação universitária. Embora exista, entre os artistas, um segmento com sensibilidade mais aguçada, digamos especial, como por exemplo, o Chico Buarque falando do universo sentimental das mulheres. Como vamos negar o alcance e profundidade de sua percepção e intuição? “Quilombo” e “Ganga Zumba” continuam sendo filmes superimportantes para falar da revolta negra e de certa forma sobre a identidade negra, mas já “Xica da Silva” deixa a desejar no que se refere à representação daquela mulher que foi também uma grande personagem histórica. Apesar da força que Zezé Motta imprimiu com o seu trabalho de atriz. Mas, independentemente de dois deles continuarem sendo muito bons e o outro questionável, em meu ponto de vista, seu diretor teve todo o mérito e tem todo o direito de voltar a fazer filmes “negros”. Mas se ele e os novos cineastas não buscarem se assegurar em ter boas consultorias e bons parceiros da população negra no processo criativo, podem incorrer em erros que não são mais admitidos pelas conquistas sociais e pelo crescimento intelectual e político do segmento negro, especialmente dos jovens que passaram pela universidade ou nasceram negros. Ou seja, nasceram em famílias com a questão da identidade negra resolvida.

(Foto: Imagem retirada do site O Globo)

Quais são os novos horizontes do seu cinema, após a consagrada carreira de Meu Amigo Fela?
Joel Zito Auaújo:
Eu estou muito chocado com o Brasil. Estou muito temeroso com a possibilidade de nos aprofundarmos em um processo cada vez maior de decadência econômica, social e cultural. O segmento direitoso e ultraconservador no Poder é muito raivoso e perigoso. O ambiente pode ficar mais insustentável para pessoas como eu que fazem filmes críticos e combativos, que buscam fazer o país avançar. Mas estou cheio de projetos nacionais e, alguns deles, são voltados para a nossa relação com a África. Se eu não conseguir fazer aqui, vou buscar recursos fora. Felizmente, estou na véspera da rodagem do meu novo longa ficcional, “O pai da Rita”, um projeto que carrego há sete anos. É uma comédia dramática romântica sobre a questão da paternidade do homem negro e que se passa no Bixiga, em São Paulo. É um filme leve, que tem como personagens centrais, dois velhos sambistas paulistanos que sempre viveram no Bixiga, um bairro compreendido como um dos que mais teve diversidade étnica em sua história, mesmo tendo ficado com a marca de o bairro das cantinas italianas. No filme, esses dois grandes amigos, que dividem um quitinete e nunca constituíram família, um dia descobrem ter uma filha, que é fruto da mesma paixão de juventude e que desapareceu misteriosamente. O filme se inspira em uma música do Chico Buarque, “A Rita”. E estou doido para trazê-lo para dentro do filme também. Mas é um filme amoroso e humanista. Amoroso com os personagens, com o bairro, com o nosso país.  Mas tenho outros projetos mais políticos, e um deles a ser rodado na África.

“Meu amigo Fela” já correu quantos festivais?
Joel Zito Araújo:
Até agora sete, dois na África, dois na Europa, dois no Brasil e um em Trinidad e Tobago, no Caribe. Já recebeu dois importantes prêmios em Festivais nível A. Eu estou encantado com o sucesso do filme e com a recepção do público. Até o momento, temos mais doze festivais que espontaneamente solicitaram o filme no mundo. Dois deles classe A: o BIF de Londres e o Festival de Durban, na África do Sul. Mas também iremos para Portugal, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Camarões e outros lugares.

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