A cor da intelectualidade

“A cor está para o Brasil como o gelo está para a população do Alasca.” – Hélio Santos.

por Stephanie Ribeiro no Think Olga

a cor da intelectualidade

As narrativas de pessoas negras não são as mesmas, mas possuem diversas semelhanças. Não seria diferente no quesito acadêmico e intelectual: crescemos acreditando que não sabemos nada, ou popularmente dizendo, que somos burros. Com essa percepção que baseia nosso intelecto como limitado, somos sabotados muitas vezes por nós mesmos ao acreditarmos que não somos intelectuais, inteligentes ou capazes o suficiente para sermos reconhecidos. Esse sentimento de “autossabotagem” nos espreita, essa sensação foi introjetada por nós negros, seja no inconsciente fruto da inferiorização racista seja na autoestima que se reflete na rotineira insegurança para certas atividades nas quais não costumamos nos ver, essa introjeção nos limita e nos frustra.

Na escola, alunos negros tendem a receber um tratamento diferente dos demais, um descaso velado. Isso já se dá pela seleção feita pelo racismo institucional que priva alunos negros de maioria pobre do acesso a uma educação de qualidade, essa que fica restrita as classes altas. O aluno negro está alheio às condições plenas de desenvolvimento, afastado dos meios que o tornariam qualificado e competitivo. Paralelo a isso o aluno negro mesmo em meios onde a maioria é negra, sofre com ofensas racistas dos coleguinhas, quanto mais escura sua pele e mais evidente são os traços “lidos” como negros, as agressões tendem a ser constantes e ferozes.

“O professor estava corrigindo as tarefas. Ele tinha terminado e falou que a gente podia conversar. A gente foi conversar e eu estava com o colega do lado. Ele chegou e cuspiu em mim”.

Esse é um relato de um jovem de 14 anos, sobre um caso que aconteceu em novembro de 2015. Provando que a violência sistêmica e estrutural que o racismo apresenta no Brasil reflete o ambiente das escolas, até mesmo por partes dos seus professores, inclusive, muitos isentam-se dos esforços na implementação da lei 10.639:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

Eu sei que a vida dos professores em escolas públicas é difícil, a profissão é desvalorizada, exaustiva e mal remunerada, estudei nesses locais de estrutura precária minha vida toda até o ensino superior. Porém eu não vou negar que existe racismo por parte de alguns, dos alunos e da direção. Que essa lei não se implementa também por desinteresse e desconhecimento dos próprios agentes da educação sobre o que seria uma educação com foco racial, e quando isso é debatido em reuniões de professores, muitos partem para ignorância e racismo, julgando o contéudo como opcional, secundário e descartável. Já se passaram mais de 10 anos e não temos uma lei que vai impactar a vida principalmente dos alunos negros sendo implementada e efetivamente aplicada e esses alunos negros, portanto, continuam sendo a maioria nos números de baixo desempenho e consequente evasão escolar.

Estima-se que mais de 3,8 milhões de brasileiros entre 4 e 17 anos não frequentam a sala de aula, segundo informações do Censo Demográfico de 2010 e compiladas em um recente estudo do UNICEF. O perfil dos adolescentes fora da escola no Brasil englobam em sua maioria adolescentes negros e pobres. Sendo assim, a evasão escolar é mais do que uma questão de classe social, ela envolve raça, a falta de discussões raciais, a distância da realidade dos jovens negros e frequentes violências geram o afastamento desde da vida escolar até a manutenção do lugar negro fora do ambiente acadêmico.

Mesmo quando criança eu já percebia que deveria me esforçar mais que os demais: seja sempre duas vezes melhor.

Meninas aprendem logo cedo que precisam ser melhores que meninos na escola, afinal eles sempre serão “os caras da matématica”, das exatas, do raciocínio lógico e rápido, mesmo que você seja a aluna que tenha passado mais vezes nas Olímpiadas de Matemática da sua escola. A mulher que se destaca em alguns campos acadêmicos não é tomada como exemplo a ser seguido pelas demais, mas como exceção, temos então um grande problema no quesito representatividade. Com o negro não é diferente, a complexidade da forma como o racismo agiu na nossa sociedade nesses quase 400 anos de escravidão, deixa muitas vezes passar que intelectuais como Luiz Gama sofreram o racismo que o impedia de estar como aluno numa sala de aula do Curso de Direito do Largo do São Francisco – hoje denominada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Gama, por conta do racismo era obrigado a escutar as aulas de fora da sala de aula, pois era impedido, por conta de sua cor, de compartilhar aquele ambiente com os demais alunos do seu curso.

A pergunta é: Quantos como Luiz Gama não ficaram da porta pra fora e nunca puderam exercer sua plena capacidade intelectual por isso? Nunca puderam estar [dentro] de forma legítima e presente usufruindo de todas as potencialidades daquele ambiente acadêmico. Não pode haver avaliação justa numa situação desigual em oportunidades e diferenciada em tratamentos.

Precisamos entender tais conceitos de gênero e raça que nos assolam durante os períodos da vida escolar, para compreender como se dá a narrativa da mulher negra no ensino acadêmico e porque os cursos superiores ainda contam com maioria branca. São duas opressões, que se realimentam e se somam criando uma situação onde não devemos ser duas vezes melhor – isso era ingenuidade minha quando criança: temos que ser quatro, dez, mil vezes melhores para possivelmente se destacar, já que nem isso é garantido. O sistema meritocrático que garante para alguns uma rápida ascensão profissional e salarial, não funciona para nós que nascemos negros. Eu fui ensinada a me exigir obsessivamente, pois as barreiras que enfrentaria eram maiores, da mesma forma que fui encorajada a esconder minha inteligência. Eu sofria literalmente por cada erro, provas com notas não tão altas, tarefas com resultado não tão positivo, eu me exigia a perfeição…

Eu não sou o símbolo que vem ao imaginário quando se pensa na boa educação e consequentemente não sou o modelo do que é ser intelectualizado. A permanência universitária se torna difícil não só pelas questões materiais, mas também pelo psicológico fragilizado pela destruição da autoestima de nós negros, não é à toa que desenvolvemos as chamadas crises de ansiedade. Quando se é colocado num ambiente onde as pessoas a sua volta não têm as mesmas preocupações, demandas, dilemas, obstáculos e dificuldades que você, a tendência é que o sujeito se cobre mais para estar no mesmo nível, mesmo que haja uma impossibilidade socio-instrumental desse parâmetro se equalizar. Pois o passado conta, a vida na escola pública pesa, a aula de inglês que não existiu é cobrada, aquela lacuna constante que fazia todo mundo ficar pelo menos uma vez por semana sem aula, a renda no limite, o intercâmbio que sua posição não forneceu, o mercado de trabalho pós cotas, Prouni/Fies é complicado para quem precisa pagar por cursos e especializações caríssimas para se tornar um profissional competitivo.

Então sim, temos alunos negros depressivos, mentalmente fragilizados, com síndrome do pânico e crises de ansiedade além de outras doenças e transtornos psicológicos graves que minam a vida social e reduzem a qualidade de vida do seu portador.

Isso é frescura? Alguns podem achar que sim. Mas me diga como podemos acreditar em nós, quando ninguém mais acredita? Quais os impactos disso sobre nossa mente?

Será que sou capaz? Será que mereço? Será que sou uma farsa?

“A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dançar, ela pode cozinhar, ela pode se prostituir, mas escrever, não, escrever é uma coisa… é um exercício que a elite julga que só ela tem esse direito.” – Conceição Evaristo.

No imaginário de jovens negros essas perguntas permeiam uma realidade autopunitiva. Algumas pessoas apontarão isso como mera falta de autoestima ou falta de vontade, eu vejo como consequências de um estado racista, que chegou a privar o negro do acesso à educação e ainda hoje faz isso de forma indireta, tanto que precisou de cotas para o nosso ingresso ser “simbólico”. A intelectualidade para o negro ainda é negada ou repleta de ressalvas, pois uma das alcunhas racistas sobre a definição dessa, é que ela é inerente ao ensino acadêmico, não que o branco venha exercendo a intelectualidade. No Brasil, cada vez mais, a pessoa vista como intelectual se mostra alienada ou despreparada para entender questões que envolvem raça, classe e gênero. O intelectual pode não ter o diploma, assim como o diplomado não é necessariamente o intelectual. O exercício da intelectualidade também requer uma nova visão sobre a universidade e como o ensino se mostra ainda retrógrado, elitizado e limitado.

A busca pela academia é uma busca de legitimação, por isso defender a importância do acesso acadêmico para negros no Brasil é também uma questão que envolve garantir a vivência da intelectualidade como algo pleno e fidedigno.

O que esconde esses nomes e suas produções intelectuais é o racismo. Não existe outra justificativa plausível, assim como muitos intelectuais negros para serem aceitos são primeiro embranquecidos. Os que falam diretamente sobre racismo são os que mais tendem a ser “escondidos” dos olhos de todos. Esses que acabam inclusive sendo só fonte de estudos para alunos negros que se mostram interessados em suas narrativas e produções.

 

Indicação de leitura:

Intelectuais Negras – Bell Hooks

Professores são suspeitos de cuspir em aluno e de racismo em escola


Stephanie Ribeiro é militante do movimento feminista negro e estudante de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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