Democracia em reconstrução

A destruição é imensa. Há muito a recuperar, mas cada grupo social no Brasil estará atento às políticas. E aos políticos que as implementarão

A um mês do fim, o Brasil toma ciência do tamanho do desmonte por quatro anos de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Além da democracia, sob ameaça constante, as políticas públicas estão feridas de morte. Cada relato das equipes de transição evoca perplexidade, indignação, tristeza. Na Saúde, o Programa Nacional de Imunizações, uma joia brasileira, está em frangalhos. O país não conseguiu cumprir metas de vacinação dos bebês de até 1 aninho. Mais de 1 milhão de procedimentos hospitalares não foram realizados no SUS no triênio 2020-2022, segundo nota técnica dos pesquisadores do Monitora Covid-19. O grupo de Saúde estima em 1 bilhão o déficit de atendimentos, levando em conta outras atribuições, de consultas à distribuição de medicamentos.

Na Educação, o plano de aniquilar a autonomia financeira das universidades federais se estendeu até o apagar das luzes, com o vaivém recente de bloqueio no Orçamento. O número de jovens inscritos para o Enem despencou, há atraso de aprendizagem entre os miúdos. No Meio Ambiente, o capitão foi o único presidente a registrar três anos seguidos de aumento no desmatamento da Amazônia. Na temporada 2022, a queda de 11% sobre o período anterior esconde que 11.568 quilômetros quadrados de floresta tombaram, 53% acima do último ano de Michel Temer.

Na segurança pública, as medidas de facilitação do acesso a armas de fogo e o afrouxamento do controle puseram em mãos civis um arsenal de 1,2 milhão de peças em três anos, segundo levantamento dos institutos Igarapé e Sou da Paz. A transição recomenda ao futuro presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, um revogaço de atos executivos, incluindo restrição de acesso, redução da validade dos registros, ações de entrega voluntária e recompra de armas de grosso calibre. No fim dos anos 1990, o movimento Viva Rio organizou a primeira campanha de recolhimento maciço de armas leves, com participação de igrejas evangélicas. Em 2001, 100 mil unidades foram destruídas no Aterro do Flamengo. Desta vez, será mais complexo, alerta Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC):

— Naquela época, havia muitas armas antigas guardadas por famílias. A situação hoje é mais complexa. Dependendo do valor oferecido, pode não haver incentivo a entregar. Por outro lado, há risco de o dinheiro ser usado para compra de arma pequena. No cenário atual, é urgente o controle.

Como prometido, o atual presidente não demarcou um centímetro de territórios indígenas. Esfacelada, a Fundação Cultural Palmares tampouco avançou em reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos. A interseccionalidade de gênero e raça nunca foi levada em conta nas políticas oficiais. A intolerância religiosa grassou impune. A Cultura foi varrida.

A política social de transferência perdeu foco e eficácia. Centenas de bilhões foram gastos e 33 milhões de brasileiros ainda estão passando fome. A centralidade na família foi diluída, as condicionalidades em saúde (vacinação) e educação (frequência escolar) desapareceram. A senadora Simone Tebet, do grupo de desenvolvimento social na transição, chamou de “desmonte” a situação no Ministério da Cidadania. A palavra é recorrente nas avaliações.

O diálogo entre União, estados e municípios deu lugar a ataques; as artérias de comunicação da sociedade civil com o governo foram rompidas. Quatro em dez trabalhadores brasileiros estão na informalidade — portanto mal remunerados e sem proteção legal. Dois terços das empregadas domésticas ainda não têm carteira assinada. Mulheres enfrentam cerceamento a direitos sexuais e reprodutivos, violência doméstica, feminicídio, mercado de trabalho precário. A população carcerária caminha para 1 milhão de detentos.

O terceiro mandato de Lula tem a missão hercúlea de refundar a democracia, produzir equilíbrio macroeconômico, reconstruir políticas sociais, preservar o meio ambiente, restituir direitos, melhorar a qualidade de vida da população. O fim do superministério da Economia de Paulo Guedes devolverá à Esplanada três pastas: Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio. É bem-vinda a volta do contraditório ao debate governamental. Tensão produz inovação e melhores resultados, tal como a diversidade. Na economia moderna, serviços equivalem a dois terços do PIB e geram a maioria dos empregos; certamente, estarão representados.

O novo governo terá de se organizar sob o princípio da transversalidade. Ministérios do meio ambiente, dos povos originários, das mulheres, da igualdade racial não podem ser pastas decorativas, subordinadas a canetadas aleatórias do que alguns entendem como progresso e desenvolvimento. Essa era acabou. Se cabe uma recomendação à chapa vencedora, nenhuma decisão deve ser tomada sem resposta objetiva à pergunta: a medida beneficia ou agride mulheres, negros, povos indígenas, crianças e jovens, recursos naturais? Pôr os pobres no Orçamento não é somente pagar R$ 600 de Bolsa Família.

A destruição é imensa. Há muito a recuperar, mas cada grupo social no Brasil estará atento às políticas. E aos políticos que as implementarão. Há clamor por bem viver e também por representatividade. Não foi por acaso que, ainda ontem, oito dezenas de organizações da sociedade civil, da Ação Educativa à Coalização Negra por Direitos, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) à Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), da Terra de Direitos à Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras (Renafro), encaminharam a Lula, Geraldo Alckmin, vice-presidente eleito, e às equipes de transição a carta “A democracia que queremos”. Reivindicam no texto o fim da necropolítica do governo Bolsonaro (referência ao conceito filosófico do camaronês Achille Mbembe sobre atos e omissões que matam ou deixam morrer), responsabilização dos culpados, recomposição das políticas públicas com participação social. É o apelo pela “democracia inclusiva e generosa” que o Brasil jamais teve.

+ sobre o tema

Redução da jornada de trabalho ajudaria quebrar armadilha da baixa produtividade?

Exemplos de países desenvolvidos não dizem muito sobre qual seria...

A escalada das denúncias de quem trabalha sob calor extremo: ‘Imagina como ficam os trabalhadores soldando tanques’

Na segunda-feira (17/2), enquanto os termômetros de São Paulo batiam...

Governo divulga ações para lideranças religiosas de matriz africana

O Ministério da Igualdade Racial (MIR) apresentou para lideranças...

O Congo está em guerra, e seu celular tem a ver com isso

A Guerra do Congo é o conflito mais mortal desde a Segunda...

para lembrar

Porque ter uma boneca negra?

*Tradução do artigo Why Black Dolls Matter por Mabia Barros para...

Socrates – Alguns sonham, outros não

"Eu tenho um sonho." Essa frase praticamente define a...

Obama diz que líderes negros abriram caminho para que ele chegasse à Presidência

Fonte: Folha de São Paulo - O presidente dos...

De que cor são as vestes da moral?

A vida íntima de FHC não nos interessa....

Debate da escala 6X1 reflete o trabalho em um país de herança escravista

A deputada Erika Hilton (PSOL-SP) protocolou na Câmara dos Deputados, nesta terça-feira (25), o texto da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que quer colocar fim à...

Não há racismo estrutural, e discriminação afeta brancos, diz governo Trump

O governo de Donald Trump considera que não existe racismo estrutural nos EUA e alerta que a discriminação é, de fato, cometida contra brancos. Numa carta escrita no dia...

Trump demite chefe das Forças Armadas dos EUA

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, demitiu o general Charles Q. Brown, oficial da mais alta patente que chefiava as Forças Armadas americanas no Pentágono,...
-+=