Do jazz a Beyoncé, entenda como o afrofuturismo cria possibilidades de vida para a população negra

FONTEO Globo, por Pâmela Dias
Helen N'zinga e Morena Mariah, seguidoras do afrofuturismo (Foto: Divulgação/Imagem retirada do site O Globo)

Imagine uma viagem ao futuro, com elementos de alta tecnologia, mas, ao mesmo tempo, com toques de ancestralidade africana. Esse é o conceito do afrofuturismo, que há décadas protagoniza negros na arte, filosofia, teoria crítica e ciência. Mais do que uma corrente estética, o movimento levanta possibilidades de vivência negra em sociedades que não são marcadas pelo racismo e pela opressão, funcionando como crítica à realidade atual.

Nas histórias de filmes e séries ficcionais, o futuro está quase que completamente mecanizado, remetendo ao desenvolvimento de padrões de vida. A Wakanda de “Pantera Negra” é um exemplo famoso, ao misturar alta tecnologia e conexão com a ancestralidade. A partir deste conceito, a pesquisadora e especialista em afrofuturismo, Morena Mariah, explica que a ideia do movimento é reconfigurar o imaginário global de que a negritude não está associada à prosperidade e ao sucesso.

— Digamos que os negros foram abduzidos do continente africano e tratados como alienígenas nos territórios coloniais, ao serem escravizados sentem-se alienados de seu passado pelo apagamento histórico sistemático. Mas, a partir deste sentimento de alienação, produzem arte, filosofia, teoria crítica, movimentos políticos e sociais com objetivo de preservar sua cultura e resistir às constantes tentativas de genocídio — explica.

Apesar de o termo só ter sido cunhado na década de 1990 pela afro-americana Alondra Nelson, renomada escritora e socióloga, nos anos 1950 já existiam produções afrofuturistas na arte. Um dos principais nomes foi o compositor de jazz, poeta e “filósofo cósmico”, Sun Ra, pseudônimo usado por Herman Poole Blount, que afirmava ser de Saturno. Em suas composições, o artista misturava temas extraterrestres e futuristas com elementos da ancestralidade africana.

No entanto, segundo Morena, apesar dos mais de 20 anos do movimento, entre os brasileiros o conceito ficou esquecido por um tempo, voltando a ganhar força há cerca de cinco anos, por meio da iniciativa de jovens negros e negras das periferias.

— Apesar de ser necessário dialogar com pessoas mais velhas, hoje, é a juventude da favela, que é em sua maioria preta, que voltou a levantar a bandeira e formar uma potência. A gente tem o desejo de compreender nosso passado e construir a cidade e o modo de vida que queremos.

Fundadora do negócio de impacto social Afrofuturo, Morena apresenta o afrofuturismo nas comunidades como saída para criação de um imaginário onde negros sobrevivem à violência policial, à falta de oportunidades de estudos, aos salários menores e ao racismo institucional como um todo.

A rapper Helen N’zinga, que aborda o afrofuturismo em suas músicas, acredita que neste campo artístico é possível verbalizar as lutas e reivindicar o desejo de reparação histórica. Para tal, a cantora se inspira nos trabalhos do artista brasileiro Rincon Sapiência e de outros do exterior, como o rapper MHD e o duo feminino Oshun.

— No meu EP, eu retrato as pessoas pretas como sujeitos da história, pois a palavra tem o poder de criar a nossa realidade e a gente só visualiza aquilo que conseguimos falar. Então, por mais que não esteja tão em alta como novidade estética, o afrofuturismo é um recurso extremamente importante na música, no audiovisual e na pesquisa para projetar as pessoas negras no futuro — aponta.

Rapper Helen N’zinga em seu EP Nzinga Mbandi (Foto: Divulgação/Imagem retirada do site O Globo)

Em seu disco denominado Nzinga Mbandi,  em homenagem a uma das rainhas de Dongo e Matamba, atual Angola, popularmente conhecida como Rainha Jinga, a rapper simboliza a luta da líder frente à colonização portuguesa. No clipe, Helen se veste a partir de um imaginário futurístico de como seria uma rainha angolana no século XXI: seu cabelo afro sendo a coroa, um olho mecanizado e o colar em metal, remetendo à tecnologia.

— Nesse trabalho, eu quis refletir a história das mulheres negras, que neste país são subalternizadas. Então fiz um resgate para refletir suas histórias, mas aquelas comuns como a da minha família, das pessoas do meu bairro, sob a representação da rainha Nzinga Mbandi, exemplo de resistência feminina e poder.

A sonoridade das músicas também leva conceitos afrofuturísticos, ao juntar diferentes ritmos afro populares e urbanos, como o jazz, trap e pagode baiano. Segundo Helen, seus raps carregam referências do passado e da atualidade, para unir e formar um som do futuro.

Para conhecer a arte afrofuturista:

MÚSICA:

Xênia França: cantora e compositora, Xenia fez sua estreia-solo na cena musical brasileira com seu álbum homônimo trazendo uma sonoridade essencialmente pop com toques de música eletrônica, jazz, samba-reggae, rock e R&B. Foi indicada ao Grammy Latino 2018 com seu maior sucesso “Pra que me chamas” e também para o Women Music Award 2018.

Karol Conká: grande nome do rap brasileiro e também da história do Big Brother Brasil 2021, a cantora traz em suas músicas o estilo futurista e referências africanas.

Beyoncé: o álbum visual “Black is King”, da cantora americana Beyoncé, se tornou um dos principais assuntos da esfera pop e do afrofuturismo. Da poderosa mensagem de orgulho negro às críticas pela maneira como retratou a África, a narrativa usa a fábula dos leões como ponto de partida para criar um panorama emocional, que costura elementos da história negra, referências a tradições africanas e imagens da África contemporânea.

LITERATURA:

Fábio Kabral: escritor afro-brasileiro de literatura fantástica e ficção científica. Seus livros abordam temas como sexualidade, ancestralidade africana, afrocentrismo e afrofuturismo. Entre os mais conhecidos estão “O caçador cibernético da rua 13” e “A cientista guerreira do facão furioso”.

Lu Ain-Zaila: escritora afrofuturista/sankofista, ativista social e pedagoga. Luciana, como também pode ser chamada, escreve no gênero cyberfunk – subgênero da ficção científica encontrado na trilogia”Matrix”, trazendo cenários de desigualdade, guerras, resistência das periferias, juntamente com o clima de festa e carnaval presente nas mesmas.

ARTES VISUAIS:

Cyrus Kabiru: conhecido por sua coleção de óculos, C – Stunners e suas fotografias de auto-retratos que o capturam usando suas criações. O trabalho de Kabiru trata da imaginação do futuro e da transformação da modernização

Krista Franklin: através da arte de colagens, ela aborda em seu trabalho uma mistura de poéticas, cultura popular e história da diáspora africana. Para isso, a artista utiliza elementos do fantástico, surrealismo, fotografia negra, mitologia e consciência coletiva.

AUDIOVISUAL:

Pantera Negra: o filme dirigido por Ryan Coogler acompanha T’Challa, que volta para a isolada e tecnológica nação africana de Wakanda para se tornar rei. Mas, com o aparecimento de um poderoso inimigo, os poderes do Pantera Negra são testados, colocando em risco o futuro de Wakanda, abundante em Vibranium, e de todo o mundo que cobiça o metal.

O último anjo da história: um ensaio fílmico dirigido por John Akomfrah sobre a estética negra que traça as ramificações da ficção científica dentro da cultura pan-africana. Akomfrah articula o uso de imagens, da nave espacial e do alienígena no trabalho de três músicos de gênio excêntrico – Sun Ra, George Clinton e Lee Perry –, para em seguida abordar a obra dos escritores da ficção científica negra Octavia Butler e Samuel Delany.

Branco sai, preto fica: no filme dirigido por Adirley Queirós, tiros em um baile de black music em Brasília ferem dois homens, que ficam marcados para sempre. Um terceiro vem do futuro para investigar o acontecido e provar que a culpa é da sociedade repressiva.

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