Nos primeiros dias do mês de setembro de 2021, o Brasil chegou à desoladora marca de 583.628 mil óbitos desde o início da pandemia de Covid-19.
Embora a primeira impressão fosse de que o vírus não escolhia suas vítimas, com o decorrer de sua propagação e a escalada no número de mortes, restou patente que a população negra no Brasil era a mais afetada.
Segundo o IBGE, há uma equalização entre negros e brancos internados por Covid-19: os primeiros correspondem a 49,1% dos hospitalizados, enquanto os últimos representam 49% deste total. No entanto, não há equilíbrio no número de mortos. Enquanto pretos e pardos representam 57% dos óbitos, brancos correspondem 41% dos mortos pela doença. O Boletim Epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde da Cidade de São Paulo, de 30.04.2020, indica que o risco pessoas negras morrerem por COVID-19 é 62% em comparação com a população branca.
Em sua 11ª Nota Técnica, o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC – Rio analisou a taxa de letalidade da COVID-19 no País. O NOI analisou, até 18.05.2020, cerca de 30 mil casos mais graves encerrados das notificações de Síndrome Respiratória Aguda por COVID-19, disponibilizados pelo Ministério da Saúde. Conforme estes registros, cerca de dez mil pessoas haviam se identificado como brancas e quase nove mil como pretas ou pardas. No entanto, apesar de números tão próximos, na avaliação dos óbitos as diferenças são claras: cerca de 55% dos falecidos eram pretos e pardos, enquanto entre pessoas brancas, esse percentual foi de 38%.
Tais números não são decorrem do acaso. São fruto desigualdades socioeconômicas que tem suas raízes históricas no processo escravagista. Para melhor compreender tais vulnerabilidades, analisemos a questão sob a ótica de duas das principais epidemias que atravessaram o Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX: febre amarela e cólera.
Embora houvesse notícias de casos esparsos decorrentes do tráfico transatlântico já no início do século XIX, o primeiro grande surto de febre amarela em terras brasileiras ocorreu no verão de 1849-50. Nesta época, o Rio de Janeiro contava com cerca de 266 mil almas. Há estimativas de que um terço destes habitantes contraiu a doença, com 4.160 vítimas fatais, embora se estime que este número fosse, em verdade, de 10 a 15 mil pessoas, já que por conta de regulamento sanitário de março de 1850, as comissões paroquiais de saúde pública estavam proibidas de divulgar quaisquer informações sem consentimento da Comissão Central de Higiene, órgão coordenador do esforço de combate à epidemia. Como se vê, omissão de informações desta natureza não é privilégio dos brasileiros do século XXI.
A febre amarela reapareceu nos verões seguintes, levando a população mais abastada da cidade a refugiar-se, por recomendações médicas, em Petrópolis ou outros municípios da região serrana fluminense. Seja no século XIX, com a febre amarela, seja na atualidade, com o COVID-19, nota-se que a parte mais “afortunada” da população tem meios de mais eficazes de proteção e prevenção. Não nos esqueçamos que a primeira vítima de COVID Estado do Rio de Janeiro foi Cleonice Gonçalves, mulher negra de 63 anos, empregada doméstica, que residia com seus patrões e contraiu a doença na casa da família para quem trabalhava, que acabava de retornar da Itália infectada.
Na procissão da Quarta-Feira de Cinzas de 1849, a imagem de São Benedito, santo negro que ocupava lugar na procissão há dois séculos, foi deixada de lado, pois alguns religiosos recusaram-se a carregar o seu andor ao argumento de que “branco não carrega negro nas costas, mesmo que seja Santo”. E como não houvesse quem o carregasse, o santo foi abandonado na sacristia da igreja. No verão seguinte, abateu-se a primeira epidemia de febre amarela na Corte. Foi então que correu entre as beatas cariocas que a peste era fruto da vingança do santo negro ofendido, até porque, como veremos a seguir, a doença provocava mais mortes entre brancos que entre negros.
A ciência médica da década de 1850 desconhecia a forma de transmissão da moléstia. Notavam que atacava de forma mais branda os africanos e a habitantes negros da Corte em geral. Já entre população branca houve um grande número de mortos.
Partindo desta constatação, os higienistas formularam políticas públicas em que se escolheu priorizar algumas doenças em detrimento de outras. A febre amarela, flagelo dos imigrantes que, esperava-se, ocupariam o lugar dos negros nas lavouras do sudeste cafeeiro, tornou-se o centro dos esforços das autoridades.
Rui Barbosa assim descreveu as características da febre amarela:
“É um mal, de que só a raça negra logra imunidade, raro desmentida apenas no curso das mais violentas epidemias, e em cujo obituário, nos centros onde avultava a imigração europeia, a contribuição das colônias estrangeiras subia a 92 por cento sobre o total de mortos. Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento europeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência da nação na sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue ariano, com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de um matadouro da raça branca”
Suas palavras deixam claro o incômodo pelo fato de a doença não matar pessoas pretas, mas sim as brancas, impedindo o branqueamento que, segundo a ciência eugenista da época, eliminaria gradualmente a herança africana de nossa sociedade.
Com o avanço da ciência médica, descobriu-se que a transmissão da febre amarela se dá através da picada do mosquito Aedes aegypti, comum nas América do Sul e Central e em algumas regiões de África. Portanto, não era verdade que negros fossem geneticamente menos propensos serem acometidos pela moléstia, mas sim que os africanos e brasileiros, em certa medida, eram mais expostos ao vírus por picadas do mosquito, o que acabava os tornando mais tolerantes à doença.
A epidemia de febre amarela foi tratada por meio de políticas públicas porque afetava a política de imigração europeia. No entanto, existiam outras doenças, no mesmo período, que afetavam mais a população preta e parda e ficaram invisibilizadas, como foi o caso do cólera.
Uma devastadora epidemia desta doença atingiu o Rio de Janeiro entre 1855 e 1856. Segundo Pereira Rego, Presidente da Junta Central de Higiene, o cólera era uma doença que escolhia suas numerosas vítimas entre escravos e “indivíduos de ordem inferior”, numa clara alusão aos libertos e homens livres de cor. Nas suas palavras, doença feria particularmente “as classes inferiores da sociedade” que viviam em piores condições se higiene. Ainda segundo o futuro Barão do Lavradio, o cólera praticamente exterminou a população de rua carioca, já que era composta sobretudo de ex-escravizados e libertos. Estima-se que a epidemia de cólera matou cerca de 4.828 africanos e seus descendentes na Corte.
Sob o olhar dos higienistas brasileiros da época, é perceptível que o cólera atingia a mão de obra escrava, homens de cor e seus descendentes. Afetava um passado escravocrata em ruínas. Já a febre amarela ameaçava o futuro da nação, afetava mercado de trabalho “livre”, cada vez mais associado à chegada massiva de imigrantes, do advento do trabalho assalariado e dos trabalhadores imigrantes brancos. Por isso, precisava ser combatida.
Esse alijamento da população negra das políticas públicas ainda persiste em 2021.Conforme os dados acima, a população preta e parda é a que mais morre na pandemia. O estudo do IBGE “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população”, de 2019, evidencia a dificuldade desta camada da população no exercício do direito à saúde. Pessoas negras têm os menores índices quanto à educação, moradia, acesso ao mercado de trabalho formal e distribuição de renda.
Especificamente no que tange ao isolamento social, medida tão necessária no combate à pandemia, a Nota Técnica 46 do IPEA revela que o trabalho remoto foi a realidade para 17,6% dos ocupados brancos e para apenas 9% dos negros nessa situação. Somente um terço do total de trabalhadores ocupados em atividade remota era composto de trabalhadores negros.
Quanto à moradia e o combate COVID-19, a prática revela que pessoas pretas e pardas não conseguem isolar-se de seus familiares quando doentes porque moram em locais com pequenos cômodos, onde muitas vezes há falta de água, o que só aumenta o risco de contaminação daqueles em seu convívio.
As epidemias de febre amarela e cólera e a pandemia de COVID-19 são a face histórica e escancarada de uma opção política brasileira pelo aniquilamento de corpos negros. Cabe a nós exigir políticas públicas de saúde em prol da população negra.
Resistamos. Cuidemos uns dos outros e vacinemo-nos.