Se não tivessem desembarcado no Brasil cinco anos atrás, os irmãos congoleses Ali e Chadrac acreditam que já estariam mortos.
Por Júlia Carneiro, Felipe Souza e Fabio Teixeira*, da BBC
“Poderíamos ter tido o mesmo destino que meu tio e meu primo”, diz Ali, referindo-se aos parentes, pai e filho, que foram decapitados na guerra civil da República Democrática do Congo (RDC) no ano passado – vítimas de um conflito que já tirou cinco milhões de vidas ao longo de duas décadas.
Em julho de 2013, enquanto multidões de católicos do mundo todo louvavam o papa Francisco na praia de Copacabana, os jovens Ali Ngangu Ntela e Chadrac Kembilu Nkusu desembarcavam no Rio deixando para trás sua família, seu país e a guerra.
A Jornada Mundial da Juventude foi a oportunidade agarrada pelos irmãos e muitos outros que conseguiram vistos com mais facilidade para escapar do Congo, o maior país da África subsaariana, e nunca voltar. No ano seguinte, tiveram o pedido de refúgio acatado.
Os irmãos são parte de uma comunidade de quase dois mil refugiados ou solicitantes de refúgio congoleses no Rio, segundo estimativas de lideranças locais.
A grande maioria vive em favelas, tendo fugido dos perigos e dificuldades de seu país para enfrentar uma rotina de violência e tiroteios no Rio. Estão concentrados em Brás de Pina, na zona norte, sobretudo na favela Cinco Bocas; em Barros Filho, também na zona norte; e em Duque de Caxias e no Jardim Gramacho, na Baixada Fluminense.
As histórias de Ali, Chadrac e muitos outros são de dor, sacrifício, famílias separadas, viagens arriscadas – e muitas vezes de decepção com o país no qual vieram buscar uma vida melhor.
Em meio à crise econômica e aos altos índices de desemprego no Brasil, Ali tem passado os últimos meses em busca de emprego, e já pensa em desistir.
“Estou procurando há muito tempo. Já estou cansado de procurar. A gente está sofrendo mesmo”, diz o jovem de 24 anos, que já trabalhou como ajudante de eletricista, pintor, pedreiro e sonha em poder estudar para ser técnico ou engenheiro elétrico.
“O Brasil é muito bom, mas não estamos conseguindo uma oportunidade para sermos felizes aqui”, afirma.
Êxodo de países em guerra
De acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), os congoleses são o segundo maior grupo a ter a solicitação de refúgio acolhida pelo governo brasileiro depois da Síria, com 953 pedidos reconhecidos entre 2007 e 2017, o equivalente a 13% dos refúgios acatados no período.
Os congoleses chegam fugindo de uma guerra que gera massacres, mortes a machadadas, estupros, tráfico humano, doenças e desnutrição. O presidente Joseph Kabila, no poder desde 2001, se recusa a sair apesar de seu mandato ter expirado no fim de 2016.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a crise humanitária no país vem se agravando, com quase cinco milhões de pessoas deslocadas internamente em razão do conflito – e quase 700 mil tendo fugido do país.
A maioria fugiu para nações vizinhas como Uganda e Burundi, na maioria das vezes se submetendo a travessias arriscadas. Outros foram para a vizinha Angola, como o jogador de futebol Luta Espoir-Babou. Com medo de ter que voltar para a RDC, ele decidiu fugir para o Brasil.
Ao lado de sua esposa, grávida, Luta passou mais de um mês escondido no convés de um navio de contêineres para chegar ao Rio com as roupas do corpo e sem dinheiro. O filho nasceu meses depois, mas morreu com 10 meses, em janeiro do ano passado, em meio aos festejos do Réveillon. “Eu passei a festa com tristeza”, diz Luta, que fugiu de seu país em 2008, primeiro para a Angola em 2016 para Brasil, com medo de ser enviado de volta para a RDC.
Ele vive na favela Cinco Bocas, em Brás de Pina. A comunidade é dominada por uma facção e tem tiroteios constantes por causa de incursões de outro grupo criminoso que tenta se estabelecer no local. Para Luta, a violência parece maior e mais constante do que no Congo, a guerra fazendo parte da rotina.
Migrantes enfrentam violência e racismo
Cerca de 50 famílias de congoleses moram em Cinco Bocas e costumam se reunir nos fins de semana nos cultos de uma igreja evangélica fundada por um pastor do país. Muitos já deixaram o Brasil, seguindo na peregrinação em busca de oportunidade. Uma parte foi buscar refúgio na França.
“As pessoas sempre reclamam da violência. Mas o sofrimento é igual ao dos brasileiros que moram nesses locais”, conta Charly Kongo, congolês que chegou ao Rio dez anos atrás e hoje é uma das lideranças da comunidade na cidade.
“Não é por vontade que vivem nesses lugares. Mas a maioria das famílias não ganha nem um salário mínimo e não tem outra opção.”
Para Kongo, além de todas as dificuldades enfrentadas no Brasil por pessoas de diferentes nacionalidades que chegam buscando refúgio, os africanos sofrem mais por causa do racismo no país.
Ele acredita que refugiados sírios ou de outros países com pele mais clara têm mais facilidade de conseguir empregos e de ter acesso a vagas que o grupo de congoleses têm dificuldade de alcançar, mesmo que tenha tido boa educação em casa.
“Para a gente, as vagas reservadas são nas áreas de limpeza, construção civil, carregador”, diz Kongo. “Como acontece com a maioria dos negros no Brasil. Se aqui é difícil ver negros em postos altos, imagina para refugiados negros conseguirem um bom trabalho.”
“As pessoas ficam decepcionadas, com certeza. A esperança que tinham vai pelo ralo. Mesmo assim, sentem que no final é melhor estar aqui do que no Congo. Sentem que pelo menos dá para viver”, afirma Kongo, que mora em Nova Iguaçu e dá aulas de francês no Abraço Cultural, um centro de idiomas onde os professores são refugiados.
Sem futuro ‘na informalidade’
Irmão de Ali, Chadrac Kembilu Nkusu tinha apenas 16 anos quando chegou ao Brasil. Aos 21, ele está vivendo de vender camisetas imitando marcas como Nike, Adidas e Calvin Klein do lado de fora da estação das barcas de Charitas, em Niterói, onde vive. Mas as vendas estão paradas, e a geladeira está vazia.
“Sair com fome do Congo para passar fome aqui no Brasil… Que vergonha, né?”
As dificuldades ao longo desses cinco anos foram tantas que Chadrac resolveu tentar a sorte em Paris, onde vivem outros familiares. Mas não passou do aeroporto de Lisboa. Passou cinco dias preso em uma cela na imigração. Acredita que foi barrado por racismo, já que tinha os vistos necessários para entrar na Europa. Foi enviado de volta ao Brasil.
Com um jeito extrovertido e disposto, Chadrac diz ser “muito inteligente” e ter tido uma boa educação em um colégio particular católico na RDC. “Eu fico me perguntando: eu vou passar a vida toda no Brasil vendendo (produtos no mercado) informal? Eu, que tenho tanto conhecimento? Por isso estou batalhando para entrar na universidade.”
O sonho dele é estudar Letras, para aprimorar o português (que fala bem) e ensinar o francês, que é a língua oficial de seu país. Está buscando uma vaga em um curso pré-vestibular universitário.
“Acho que eu vou ser uma pessoa no futuro no Brasil. A pessoa que eu sou hoje, as qualidades que eu tenho, ninguém valoriza. Para valorizar a minha capacidade, eu tenho que estudar, me formar”, afirma.
Chadrac usa um colar com um pingente de osso marcado com as iniciais RDC enviado pela mãe, que continua no país. Foi ela quem organizou a ajuda para que os filhos pudessem fugir em 2013, para tentar protegê-los.
“Ela fez de tudo para ajudar a sair de lá”, conta Ali.
Hoje, conseguir um visto para o Brasil no Congo está muito mais difícil, diz Chadrac. “Ela está lá e o clima não está bom. Está procurando como sair desse país miserável. Isso me estressa muito, fico desesperado”, diz Chadrac.
“É por isso que tenho que conseguir algum futuro bom para mim no Brasil.”
*Fabio Texeira é fotojornalista e documentarista e está acompanhando as trajetórias de congoleses no Rio para o documentário “Brasil, meu refúgio”.