Hoje secretária de Políticas de Ações Afirmativas, Combate e Superação do Racismo no Ministério da Igualdade Racial, Márcia Lima considera que pode estar secretária no momento, mas de fato é professora. “Chegar na posição em que cheguei tendo uma carreira de 30 anos te dá tranquilidade para tomar certas decisões. Lógico que é tenso, mas, se eu sair daqui, vou voltar para a sala de aula”, declara Lima, que passou cerca de 20 desses 30 anos como professora do Departamento de Sociologia da USP, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
Doutora em sociologia pela UFRJ, com pós-doutorado pela Universidade de Columbia e experiência como professora visitante em Harvard, ela começou a dar aulas aos 24 anos, lecionando sociologia em ambientes nem sempre focados no tema, como os cursos de Economia, Design e até Fisioterapia. “Isso foi muito importante na minha formação como professora, porque era desafiador prender a atenção e despertar o interesse desses alunos”, lembra a docente.
O desafio também englobava o fato de ser uma jovem mulher negra em alguns dos cursos mais elitizados do Rio de Janeiro. “Eu já enfrentava o desafio silencioso do racismo nesses espaços. Era bem difícil a construção da autoridade do docente, da credibilidade das nossas explicações em aula”, conta. Com linhas de pesquisa voltadas para ações afirmativas, desigualdade racial e inclusão no mercado de trabalho, Lima, que também é pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), se tornaria anos depois uma das principais vozes na implantação da política de ações afirmativas da FLLCH em 2018.
O convite para integrar a equipe do Ministério da Igualdade Racial, liderado pela ministra Anielle Franco, aconteceu quanto ela já estava de malas prontas para viajar para a Universidade da Pensilvânia, onde passaria um semestre. Após conversar com a família e pessoas como a filósofa e escritora Sueli Carneiro, decidiu assumir o cargo em que permanece desde o início de 2023. No governo, Lima vem conduzindo também uma política de integração dos ministérios para promover políticas afirmativas e o combate à vulnerabilidade racial no Brasil.
“Combater a letalidade racial no Brasil hoje é um processo civilizatório. É barbárie do Estado”, afirma na conversa com Gama. Entre outros temas, aborda o desafio de se debruçar diariamente sobre os resultados da violência racial, questiona as visões sobre ter uma missão na carreira e defende a importância do estudo para a próxima geração de sociólogos.
O racismo brasileiro que a gente conhece não é de ofensa racial direta, mas de descredibilidade, de invisibilidade
G |O que te moveu a trilhar esse caminho pela sociologia e as ciências sociais?
Márcia Lima | Quando a gente vem de uma família de classe média baixa, e é a primeira geração de universitários da família, é naquela chance que vai todo o sacrifício familiar. Nós somos cinco filhos, e isso dava uma angústia muito grande. Hoje em dia a gente entende o que é um curso de sociologia. Naquela época não. Brinco que as pessoas só conheciam como sociólogos o Betinho e o Fernando Henrique Cardoso. Na minha cidade natal, em Barra do Piraí, tinha uma professora muito querida, que fazia testes vocacionais. Sempre gostei muito de aula de laboratório, biologia, e era muito boa em português e redação. Lembro dessa professora falando que eu tinha uma coisa forte de pesquisa e de humanas. Essas duas caixinhas se juntaram na carreira de pesquisadora nas ciências humanas. A minha curiosidade sempre foi muito forte no campo da pesquisa, então comecei essa trajetória tateando. Tentei comunicação e entrei para as sociais. Humanidades, escrita e pesquisa foi um mundo onde eu me encontrei bem.
G |Você ainda lida com o racismo e machismo no trabalho, seja na universidade ou na gestão pública?
ML | Mudou muito, mas só recentemente. Completo, neste ano, 30 anos de sala de aula. Então, comecei muito jovem. O Brasil dos anos 90 era outro, a gente não falava de raça no café da manhã como hoje. E o racismo brasileiro que a gente conhece não é de ofensa racial direta, mas de descredibilidade, invisibilidade, de uma destituição constante da sua capacidade intelectual. Ser ensinado numa universidade por uma mulher negra de 20 e poucos anos era muito questionável. Mas não era dito. A gente sabe como é a construção disso, no olhar, na interação, na postura do estudante dentro de sala. São camadas e camadas de rejeição com as quais você lida no cotidiano. E aí é levantar a cabeça e seguir em frente, porque é muito difícil, mas não tem saída. Ou você desiste ou vai em frente.
G |O que aprendeu com sua participação na implantação da política de ações afirmativas para candidatos pretos, pardos e indígenas na FFLCH?
ML | Quando eu entrei na USP, era a única pessoa negra do Departamento de Sociologia. O [sociólogo] Antônio Sérgio Guimarães estava construindo um programa de formação de alunos. Eu e o Antônio fomos fortalecendo essa agenda dentro da FFLCH. E comecei a fazer pesquisa sobre ação afirmativa em 2010, quando a USP nem sonhava em ter uma política dessa envergadura. Apresentei essas pesquisas mundo afora, estudei ação afirmativa no governo Lula e dei curso sobre esses temas dentro da USP. E os alunos foram se organizando. Participei da reunião que apoiou a criação das cotas em 2018. Antes de vir para o governo, fui assessora da pró-reitora de inclusão e pertencimento, que tem o trabalho de construir essa política na USP. Acho a proposta da pró-reitora muito boa. Tem problemas, mas ela se dispõe a tentar, errar e corrigir. Eu temo, para a geração de jovens hoje, o massacre da rede social. Você não pode errar. Como construir uma política racial num país como o Brasil, que tem historicamente como marca do seu racismo estrutural a negação do racismo? Foi o que estruturou o nosso racismo, não falar sobre ele. Para virar essa chave, a gente tem que poder errar, voltar e botar no trilho. Eu falo isso até na posição em que estou hoje, de gestora pública. Algumas instituições dentro do governo nunca fizeram política de ação afirmativa. Um decreto presidencial constitui esse Ministério da Igualdade Racial, mas são muitas dificuldades institucionais, históricas e algumas pessoais mesmo. Nem todo mundo que está no governo acha que essa agenda é relevante. Então são muitos desafios.
G |E como foi que você recebeu esse convite? Como tem sido o dia a dia do trabalho?
ML | Eu estava para viajar à Universidade da Pensilvânia e ficar lá um semestre quando a ministra me liga convidando para assumir o cargo. Foi uma decisão muito rápida. Conversei com algumas pessoas, a família, falei muito com a Sueli Carneiro, e decidi tentar. Eu não sou uma pessoa da política, sou professora da USP. Eu sou professora e estou secretária. Adoro o meu trabalho no governo, montei uma equipe de que gosto muito, e tenho enormes responsabilidades como secretária. Brinco que o meu cargo é ações afirmativas, um tema de que ninguém gosta, e racismo, um problema que não existe. Então sou secretária daquilo que não existe e do que ninguém gosta. Chegar na posição em que cheguei tendo uma carreira de 30 anos te dá tranquilidade para tomar certas decisões. Lógico que é tenso, mas, se eu sair daqui, vou voltar para a sala de aula. Tenho a tranquilidade de um futuro certo. Isso não é a minha vida, mas um momento muito importante dela. Acho que vou conseguir deixar uma marca na política de igualdade racial brasileira, não é pouca coisa.
As pessoas estão virando especialistas com muita rapidez e isso tem uma conta alta, que é a produção da intolerância
G |Você considera que tem uma missão na profissão?
ML | Missão é uma palavra forte. Eu tenho muito medo de que nossas escolhas profissionais vistas como missão sejam destituídas de valor. Acham que a gente pode fazer as coisas de graça porque é negro. Se queremos que o Brasil melhore, a gente não precisa ser remunerado. Ninguém coloca para um homem branco a ideia de uma missão. Somos profissionais, técnicos, pessoas formadas e qualificadas no tema. Estar à frente do Plano Juventude Negra Viva é uma coisa que mexe muito comigo como ser humano. A ideia de que esse programa pode contribuir para a redução da letalidade da juventude negra… É nesse sentido que posso entender a ideia da missão. Mas só posso fazer isso porque sou qualificada. Então, o fato de ter um compromisso ético, moral e político não destitui a necessidade do meu reconhecimento como técnica. Mas, se fosse simplesmente uma excelente técnica nesse tema, não estaria onde estou. Tenho três sobrinhos negros e jovens. Hoje mesmo eu estava resolvendo a questão dos meninos negros filhos de embaixadores abordados pela polícia do Rio. Então a gente está sempre às voltas com muita dor. A ministra Anielle fala que não é fácil todos os dias olhar para a dor dos outros, oriunda do racismo e da violência racial. Outra coisa que também tem um caráter de missão é liderar e formar pessoas. É algo que eu gosto de fazer e acho que faço bem.
G |Você lembra de ter cometido alguma falha que não cometeria hoje?
ML | Eu me cobro demais, é uma coisa que tento mudar todos os dias. Você se impede de fazer as coisas. E, quando deixa de fazer com medo de errar, você se paralisa. Nós, pessoas negras intelectuais, professores universitários, pesquisadores, gestores públicos, enfrentamos sempre esse fantasma da síndrome do impostor. Será que mereço esse lugar? É preciso se cobrar menos e aceitar que você construiu esse lugar. Lógico que não construí nada sozinha. Um fator muito importante da gestão pública é que é um trabalho envolvendo muita gente. Hoje temos o Programa Federal de Ações Afirmativas, para mudar a cara da administração pública federal, fazendo com que os ministérios e as autarquias federais tenham que pensar o tema. Nós precisamos olhar para dentro do governo. Se a gente não estiver num ambiente racialmente justo, não posso produzir e nem cobrar da sociedade. E tem sido um desafio muito interessante levar essa reflexão para gestores públicos que não são negros, pessoas de carreira, muitas privilegiadas socialmente. Combater a letalidade racial no Brasil hoje é um processo civilizatório. É barbárie do Estado. Não à toa tem 18 ministérios trabalhando nessa política. É por isso que estou no governo. Se a gente não mudar, vamos ter um futuro muito ruim.
G |Que conselho você daria para alguém da nova geração que pretende seguir carreira na sua área, seja na educação ou na gestão pública?
ML | Em primeiro lugar, estude. Em segundo lugar, estude mais um pouquinho. Essa geração precisa abrir um livro e ler mais de 140 caracteres. Não dá para estudar pelo TikTok. A gente precisa ler o autor, não o que se diz do autor. Eu vejo muito isso, mesmo na USP. Pegar atalhos na formação vai custar muito caro. Acho que o que faz essa geração julgar tanto é a falta de conhecimento. Nas ciências sociais, você estuda o Marx e o crítico do Marx. Nesse processo de formação intelectual, você constrói múltiplas perspectivas. O que eu vejo hoje é uma ausência de pluralidade de perspectivas. Na pós-graduação, os alunos falam: eu quero fazer uma tese para dizer isso. Você não faz uma tese para dizer alguma coisa, você tem uma pergunta. Se você não estuda, não tem dúvida e não produz conhecimento, produz cancelamento. Isso serve para a formação intelectual e política. Eu preciso conhecer melhor o pensamento conservador, o que pensam adeptos das religiões Um cientista social tem que se formar à moda antiga, que é estudar muito. As pessoas estão virando especialistas com muita rapidez e isso tem uma conta alta, que é a produção da intolerância. Para ter tolerância, você precisa estar aberto a perspectivas. E ninguém constrói isso sem um conhecimento aprofundado das coisas. Então eu diria: estudem.