Mulheres negras reorganizam o poder nas Américas

Luta, que não busca representação simbólica, exige novas bases, sentidos e centros de poder

Em 25 de julho de 1992, na República Dominicana, foi instituído o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Frente à marginalização das mulheres negras tanto no feminismo hegemônico quanto nas esquerdas tradicionais, era urgente estruturar um movimento político próprio, transnacional, com centralidade de raça, gênero e classe.

Naquele encontro, nascia também a Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas, Afro-Caribenhas e da Diáspora. A articulação influenciou agendas regionais, pressionou organismos internacionais, incluindo a ONU, e contribuiu diretamente para a formulação da Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, e da Declaração de Durban, de 2001.

No Brasil, o Julho das Pretas e a Marcha das Mulheres Negras são consequências diretas desse processo. Em 2015, por sugestão de Nilma Bentes e articulação de coletivos e organizações em todo o país, 50 mil mulheres negras ocuparam Brasília, na primeira Marcha das Mulheres Negras, contra o racismo e a violência e pelo bem-viver. Em 2025, a meta é reunir 1 milhão de mulheres negras na capital federal no dia 25 de novembro. A demanda é a reparação e o bem-viver.

Mulheres participam da Marcha das Mulheres Negras nas ruas do centro de São Paulo – Eduardo Anizelli – 25.jul.19/Folhapress

O conceito de bem-viver, de origem andina e ampliado pelas cosmologias africanas e afro-diaspóricas, confronta o modelo neoliberal, racista, patriarcal e extrativista que sustenta as democracias formais. Também propõe um horizonte sustentado na dignidade, na coletividade e na reciprocidade.

Não se trata de simbologia. Trata-se de disputar, com método e estratégia, a reorganização do sistema político a partir de princípios forjados por mulheres negras. Princípios que nascem da prática coletiva, do enfrentamento cotidiano às desigualdades e do compromisso com uma outra possibilidade de país.

A construção dessa agenda é antiga e está em curso. Organizações como Geledés – Instituto da Mulher Negra, Criola, Instituto Odara, Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, Rede Fulanas, Fonatrans, entre tantas outras, há décadas articulam pensamento estratégico, mobilização de base e produção intelectual. O que se vê agora é uma mudança de escala e de ambição.

Nas plenárias, rodas e reuniões preparatórias para a marcha, o que se escuta não é a demanda por inclusão em estruturas falidas, mas o desejo de refazer as estruturas. Criar novas regras. Reorganizar prioridades. Interromper ciclos de violência institucional. Propor formas mais harmônicas de relação com o território, com os corpos e com a política.

É também por isso que o legado de Lélia Gonzalez permanece. Seus conceitos de amefricanidade e pretuguês anteciparam a necessidade de novas epistemologias, novas gramáticas e novas alianças políticas. A luta das mulheres negras não busca representação simbólica: exige novas bases, novos sentidos e novos centros de poder.

O 25 de julho, portanto, não é uma efeméride. Não se reduz a identidade ou celebração. É dispositivo político, ferramenta de enfrentamento, plataforma de reordenação das forças que disputam o presente e o futuro das Américas.

Quem está no centro do poder? Se a resposta não incluir mulheres negras e valores comunitários, de equidade e justiça, ela está errada.

E o movimento está em marcha.


Bianca Santana – Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de “Quando me Descobri Negra”

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