O Haiti é aqui: a fresta entre a ficção e realidade, por Heloisa Pires

Em dezembro eu participei do Salon du Livre de Martinica- Les Mondes Crèoles– cujo homenageado foi o vizinho Haiti, o que colocou em destaque e, em debate, a literatura produzida naquele país. O ensejo expôs o quanto os haitianos escrevem, publicam e consomem suas obras sendo a própria história uma temática recorrente. E esta é referência forte não apenas para os locais. Os ventos caribenhos já criaram movimentos expressivos como o Négritude que reuniu intelectuais da estatura dos martiniquenses Aimé Césaire e sua interlocução com Franz Fanon que alcança o senegalês Leopold Senghor, só para alargarmos o escopo de visão nessa perspectiva bibliográfica. O país foi a primeira República das Américas que, conjuntamente, realizou a emancipação de sua população escravizada. Um país negro, com protagonismo negro para a questão da emancipação negra não é um detalhe de cena para as narrativas tropicais.

Retroagindo no tempo, aquelas terras foram habitadas por populações aruaques e caraíbas até serem invadidas pelos espanhóis (1492) e cedidas à França (1697) quando se torna a mais próspera das colônias baseada na exportação de café, cacau e açúcar. Mas foram as rebeliões negras do século XVIII ocorridas no seu interior, que levaram à ruptura do sistema escravista francês.

As historiografias que abordam o fim da escravidão em São Domingos, hoje, Haiti, geralmente, elegem como substrato social a armar a insurreição de agosto de 1791 os rumores de uma cidadania ampla adotada na metrópole[2]. No entanto, a Revolução Francesa (1789) manteve a escravidão e promulgou os direitos plenos de cidadania apenas aos “homens de cor” livres e maiores de 25 anos. Mesmo a parcial libertação, enfrenta em São Domingos a negativa dos colonos brancos, sobretudo para a expansão do direito ao voto. A partir de então, uma sequência de rebeliões faz surgir um exército com cerca de 50 mil homens que estavam escravizados e “mulatos” livres sob o comandodo que virá a ser o herói negro,Toussant L´Ouverture. O comissário civil da metrópole, Léger Félicité Sonthonax, acaba proclamando a abolição antilhana no dia 29 de agosto de 1793. Na ocasião, ele envia três deputados a Paris para relatar as condições americanas. Jean-Baptiste Belley, negro, Jean-Baptiste Mills, mulato livre, e Louis-Pierre Dufay, branco, conseguem que a decisão seja confirmada pela Convenção Nacional[3]. Oficializado o fim da escravatura em todas as colônias, as tropas de L´Overture se realinham às republicanas. [4]

Contudo, a ascensão de Napoleão Bonaparte se dá com o intento de retomar a colônia e anular a abolição. Em 1801, uma expedição, primeiramente de 20 mil soldados e depois de mais de 40 mil, invade São Domingos. Apesar da intervenção militar e nas Leis. Napoleão Bonaparte perde essa guerra. O imperador restabelece a escravidão, ou seja, a legaliza novamente (julho de 1802) em outras, mas não nessa possessão crèole. Mesmo com a prisão e morte de L´Ouverture, novos líderes retomaram as batalhas que culminam na independência, efetivada em1804, quando o país adota o nome nativo Haiti ou Ayiti em crèole. A Abolição francesa definitiva só acontecerá em 1848, portanto, 55 anos após a primeira abolição. E o impacto dos acontecimentos haitianos irá repercutir, sobremaneira, nas específicas rebeliões negras que se deram no continente americano e, de modo geral, na série de independências de colônias, não apenas francesas.

A reação dos escravistas europeus, no entanto, foi implacável promovendo bloqueio econômico por décadas e só, ligeiramente findado com o tratado que obrigou o país a uma indenização que exauriu sua economia. A fragilização não cessou com um rosário de deposições e assassinatos de governantes, o que repercute até os dias de hoje. No século XX, alianças que fortaleceram elites como a ditadura Duvalier (1957-88) em conluio com os EUA ou mesmo a eleição livre (1990) do padre Jean-Bretand Aristides vinculado á Teologia da Libertação gerou mais instabilidades. Deposto por um golpe militar, a ONU e a OEA impuseram sanções econômicas como meio de forçar os militares à volta do eleito. E ele assume o poder porém, marcando sua gestão com fatos de corrupção e assento ditatorial. Outro bloqueio total em 1994, levantes militares internos e fragmentação social foram alguns dos episódios mais recentes que acabaram integrando o Brasil à história do país. A partir de 2004 é quem lidera uma força multinacional, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH).

Como se vê, os abalos enfrentados pela população sempre foram constantes e devastadores assim como o terremoto de 2010 que deixou 216 mil mortos e milhares sem casa ou trabalho. Dispostos a lidar com a falta de perspectiva, uma corrente migratória se adensa para os olhos brasileiros. O Haití, agora, é aqui. No Acre, aproximadamente 2000 aguardavam documentação quando começaram a ser embarcados em ônibus para São Paulo com a ordem de não parar e nem fornecer alimento. A lógica xenófoba grita mais alto para esconder a infra-estrutura da política pública voltada para as migrações. A esperança dos migrantes haitianos relata a existência de acordos entre os dois governos o que lhes garante visto humanitário e carteira de trabalho, assunto vinculado diretamente ao Ministério da Justiça. Mas, existe vida para além da burocracia.

E eu, que acabei de constatar o campo vasto da expressão literária haitiana me deparo com a angústia de um Haiti real em duas de suas principais facetas: a simbologia histórica de sua grandiosidade e a do desmerecimento que a persegue. O racismo brasileiro é uma lente eficaz para a observação dos acontecimentos. Famintos, doentes, desqualificados, o perigo do tráfico, são argumentos a circular no imaginário que pouco provoca o reconhecimento da densidade humana implicado numa solidariedade urgente.

O Glicério, polo de recepção haitiana em São Paulo impõe uma questão inquietante. Deixar a lógica de mercado imperar só leva a enxergar a qualificação profissional de cada desembarcado. E sob nossas vistas vamos deixar o Glicério ser paisagem como um Valongo do século XXI ? A angústia é minha. Conseguiremos gestar uma resposta respeitosa, que pare de vilipendiar ambas as identidades? Desta vez, a realidade impõe considerar a ficção. Quantas biografias, narrativas especiais, quem sabe poetas, músicos, escultores, bailarinos, contadores de história das histórias do país independente do ofício? Haverá quem possa se interessar pela visão de gênero das poucas e corajosas mulheres dessa travessia? Ou, como falam de suas crianças? Quais perguntas querem nos fazer? Uma aproximação sensível é possível?

Eu acho pouco provável que o Brasil homenageie a memória de um povo nascido no Haiti, nesse momento mais para a omissão fácil. E como eu ouvi ora então, não existe o amor e sim, prova de amor, haverá alguma chance para a narrativa sendo construída com a cidade?

 

 

 

 


[1]Heloisá é antropóloga e escritora de obras infnto-juvenís.

[2] Ver, entre outros: JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros. Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos; GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada; DUCHET, Michèle. Anthropologie et histoire au siècle des Lumières.

[3]La Convention nationale déclare aboli l’esclavage dans toutes les colonies; en conséquence, elle décrète que tous les hommes, sans distinction de couleur, domiciliés dans les colonies, sont citoyens français, et jouiront de tous les droits assurés par la Constitution.”[Décret du 16 pluviôse an II (4 février 1794)]

[4]http://www.dezenovevinte.net/obras/jbd_marianne.htm

 

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