Exposição “Da Maré ao Canindé, inspiração para as periferias” chega em maio ao Festival Feminista de Lisboa
Por Clívia Mesquita, do Brasil de Fato
O primeiro contato com a obra da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) no mestrado em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi o pontapé para Miriane Peregrino, 38, iniciar um projeto de incentivo à leitura no Museu da Maré em 2013, o “Literatura Comunica!”.
Desde então, jovens de diversas comunidades do Conjunto de Favelas na zona norte do Rio de Janeiro passaram a conhecer a figura de uma mulher negra, pobre, favelada, com três filhos pequenos e catadora de papel que ficou famosa por seus escritos sobre a dura rotina marcada pela fome na favela do Canindé, em São Paulo, nos anos 1950.
“Desde o primeiro momento me encantei pela história da Carolina. Pela força que ela sempre teve e porque eu via muitas mulheres da favela nela. Cada relato era um aprendizado e um choque de realidade”, conta a estudante de jornalismo e bolsista do projeto Raíza Barros, 22, moradora da Maré.
A exposição “Da Maré ao Canindé, inspiração para as periferias”, lançada em comemoração ao centenário da autora em 2014, é resultado da leitura em roda de obras como “Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960)” e “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961)”. A montagem relaciona passagens dos livros sobre direito à moradia, fome, racismo, educação, abastecimento de água, política e reforma agrária com fotografias atuais da Maré.
Raíza foi uma das organizadoras da exposição e vai levar a roda de leitura para a segunda edição do Festival Feminista de Lisboa, em Portugal. O evento auto-gerido e sem fins lucrativos acontece durante todos os finais de semana de maio deste ano. Para ajudar a custear a passagem aérea e a locomoção da estudante foi aberta uma campanha de arrecadação na internet, qualquer pessoa pode colaborar para atingir a meta de cinco mil reais.
Ajude Raíza a ir no Festival Feminista de Lisboa
Conexão Maré, Angola e Moçambique
Por conta de uma oportunidade de intercâmbio no doutorado, a coordenadora do projeto “Literatura Comunica!” viajou para Angola em 2018 e repetiu a dinâmica das rodas de leitura na capital Luanda e depois em Maputo, Moçambique. Nos países africanos de língua portuguesa, ela se deparou com a atualidade da literatura de Carolina Maria de Jesus.
“A desigualdade social, infraestrutura, saneamento básico, abastecimento de água, luz, são aspectos que a Carolina traz no livro de uma favela no Brasil nos anos 50 que em Luanda ainda é atual. Em Moçambique foi a mesma relação, as pessoas se identificaram muito. Agora é a vez de Portugal”, declara Miriane.
Na ocasião, o morador da Maré Pablo Marcellino, 22, que participou das rodas de leitura, foi convidado para a exposição que também homenageou sua tia Ana Maria de Souza no Centro Cultural Brasil-Angola (CCBA). Conhecida como primeira escritora negra da Maré, também poetisa e artista plástica, Ana Maria faleceu em 2016.
“Ela tinha um sonho de ser conhecida e a exposição foi uma oportunidade de homenagear ela e a Dona Orosina [uma das primeiras moradoras da Maré]”, diz Marcellino que é ator, roteirista e colunista do jornal Voz das Comunidades. “Uma das coisas mais interessantes de conhecer Carolina é que é uma personagem muito típica na favela até hoje, tanto no comportamento quanto nas vivências”, destaca.
Literatura Comunica! em 2019
O jornal “Literatura Comunica!” está em fase de montagem e vai reunir textos dos bolsistas e pessoas que participaram da roda, com depoimentos e textos de críticas literárias com foco na divulgação de autores populares. A expectativa é lançar o material antes da viagem da Rízia para Portugal, em maio, e levar exemplares da publicação.
A primeira roda de leitura deste ano foi direcionada aos professores da Escola Municipal Bernardo Vasconcellos, no Complexo da Penha (RJ), para divulgar Carolina Maria de Jesus e autores populares em sala de aula. Desde 2015, as oficinas também acontecem em vários pontos da cidade além de outros estados como Espírito Santo, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
O “Literatura Comunica!” foi contemplado com o Prêmio Todos Por Um Brasil de Leitores (2015) e o Prêmio Culturas Populares (2018) do Ministério da Cultura (MinC), extinto em janeiro de 2019 como uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro. Para Miriane, a precarização das escolas e a falta de editais sobre incentivo, difusão da literatura brasileira e bibliotecas comunitárias torna ainda mais difícil o trabalho.
“Com o Ministério da Cultura a gente ainda tinha esperança de tentar alguma coisa, agora é muito improvável que se volte para literatura e esse tipo de projeto”, constata a doutoranda em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Olhar para o campo
Apesar de ser conhecida como favelada mundo afora, Carolina Maria de Jesus nasceu e foi criada no campo, no interior de Minas Gerais. A migração penosa da autora remonta a própria formação das favelas nas grandes cidades. Mesmo com pouco estudo formal, indo só até a segunda série primária, Carolina era atenta aos acontecimentos políticos da época e autodidata.
A crítica e o questionamento sobre a desigualdade social são constantes nos seus diários: “Porque é que o governo não distribui as terras para o povo?”, pergunta no seu segundo livro “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961)”.
Segundo Miriane, a autora aborda o tema da reforma agrária só que em outras palavras. Mesmo na favela, Carolina continua uma mulher do campo. Por isso, surgiu a ideia de organizar rodas de leitura nas escolas dos assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O novo projeto caminha para se concretizar no Rio Grande do Sul ainda em 2019.