Meu irmão, também negro, depois de ouvir minha explicação sobre o famigerado pacote “anticrime”, indagou-me o seguinte: – redução de danos? Qual a parte boa? Boa pra quem? Devemos comemorar?
Por Djefferson Amadeus, do Justificando
Respondi, citando Mano Brown: não há o que comemorar; não curta esse clima de festa, ao que ele me interrompeu, indagando-me o porquê. – Porque somos negros, disse eu. E concluí: nosso povo não pode mais aceitar ser tratado como corpos negociáveis. Teu corpo não é passível de escambo!!!
Se aceitares a morte, ainda que por intermédio de uma redução de danos, que o faça você, porque decidir o modo como tu morrerás – se na cadeira elétrica ou com um tiro de fuzil (“redução de danos”?) – é algo que só pode ser decidido por você.
Com isso, quero dizer-lhe o seguinte: que legitimidade tem um Congresso representado por 96% de pessoas brancas (ou 96% de pessoas que não se consideram negras) para falar em redução de danos, em seu nome? Ora, ora e ora. Se és tu, com teu corpo negro, que arcarás o preço dessa “redução de danos”, então somente você pode decidir se aceita (e entende) isso como redução de danos.

Afinal de contas, é muito fácil nominar outras formas de segregação e extermínios de corpos negros, como redução de danos, quando estão reunidos 96% de pessoas, que não são negras, decidindo medidas que não estão apontadas para os corpos delas.
Costumo dizer que, da mesma forma que nem todo inimigo do meu inimigo é meu amigo, nem toda derrota de um inimigo significa a vitória de todos que lutavam contra o derrotado. A “democracia” brasileira é um bom exemplo, porque, como bem demonstrou Fábio Konder Comparato, a vitória da República, em 15 de novembro de 1889, não significou a vitória de um passo para a democracia, mas sim para a instauração de um regime de descentralização oligárquica (racista), acrescentei eu.
O mesmo pode ser dito em relação à redução de danos, porque ela não atingirá um branco da mesma maneira que um negro, como demonstrou o Filósofo Rodrigo França, em entrevista ao programa Justa Causa.
Um exemplo demonstra bem isso: se um sujeito branco – defensor da maioridade penal aos 18 anos – disputa com dois grupos que querem que a redução da maioridade penal seja aos 16 anos e 14 anos, respectivamente, a vitória do grupo que queria a maioridade penal aos 16 anos até pode ser vista como uma redução de danos, para o primeiro sujeito, que tem filhos brancos e defendia a redução da maioridade aos 18 anos, mas jamais será vista como redução de danos para as mães e pais de filhos negros, que têm de orientá-los a não correrem sem camisa, na rua, por exemplo.
Quem afirmou que o pacote “anticrime” aprovado é uma redução de danos não tem consciência de classe e raça; por isso enxerga o sistema penal como uma espada, com dois gumes, quando, na verdade, o sistema penal é uma faca, que tem um lado cego, para não machucar brancos e ricos, e outro lado afiado, que é feito para ceifar corpos negros e pobres, como as crianças de Paraisópolis.
Um minuto de silêncio e lágrimas… Concluo dizendo que a limitação ou delimitação do poder punitivo é uma discussão central, porque ela está ligada à questão do racismo. Qualquer afrouxamento em relação ao punitivismo recairá em face dos corpos negros, porque o sistema penal é seletivo. Seletivo não só porque há uma classe dominante no poder; ele é seletivo porque é feito para ser assim, ou seja, é fisiológico. E isso se agrava num estado estruturalmente e institucionalmente racista, como bem observou Silvio Almeida!
O projeto “anticrime” aprovado, em relação aos negros e negras, metaforicamente falando, previa cadeira elétrica, mas, com as supressões, passou a prever injeção letal! Redução de danos? Será mesmo?
Por fim, uma observação importante: não estou dizendo que brancos não possam falar sobre racismo, homens não possam falar sobre feminismo e heterossexuais não possam falar sobre questões LGBT. Podem e devem, porque, como bem ensinou a filósofa Djamila, “Lugar de fala não é impedir alguém de falar, é dizer que outra voz precisa falar”.
Sem ingenuidade, não desconsidero a guerra de hegemonia, a importância das lutas por dentro, disputar posições estratégicas, enfim, não desconsidero a teoria dos jogos, porque a conjuntura impõe que joguemos. Quem advoga sabe. Jogar é necessário. E ponto! No entanto – e aqui está o X da questão – é preciso cuidado, porque todo jogo tem um limite, isto é: algo que é inegociável, razão pela qual o toma lá da cá, sem limites, pode fazer com que quem está por dentro, segundo Thiago Fabres, acabe ficando irreconhecível, como os porcos da obra de George Orwell. No final, os porcos não eram mais porcos; eram “humanos”.
Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST).