Imagine poder acordar, partilhar momentos do seu dia, não se preocupar com a aparência, conteúdo, muito menos com o teor das falas e ainda monetizar cada vez mais. Esse é o privilégio das personas brancas em ambiente digital, os influencers de comportamento, mesmo que este fira regras de convívio, honestidade e civilidade. Casos recentes mostram que não precisa nada, além de ser o padrão, para passar a ter capital digital na forma de milhões de seguidores e marcas dispostas a pagar por publicidade ainda que tais pessoas sequer tenham talento para tal. Até no silêncio de uma viagem aérea essas pessoas se beneficiam. Não por acaso, os novos milionários brasileiros são emergentes das redes sociais que, sem muito esforço ou comprometimento com nenhuma pauta, caem no gosto popular.
Enquanto alguns possuem o monopólio das amenidades nas redes, adivinha para quem sobra o título de “mimizentas”?
Como mulher negra em constante letramento racial, busco seguir nas redes quem acrescenta nessa construção, pessoas que se pareçam comigo, que atentam contra o padrão brancohegemônico revelando suas potencialidades, talentos nos mais variados campos. O olhar racializado crítico é critério determinante na definição de quem acompanho virtualmente, pois sem isso perde-se o sentido de “influência” da perspectiva que me encontro desde que passei a me compreender como mulher preta com todas as intersecções que atravessam essa identidade. Tanta gente fantástica, que domina vários assuntos, de gastronomia à ciência política, passando por moda, beleza, viagens, investimentos e educação financeira entre outras áreas sem, no entanto, ter a visibilidade tampouco o sucesso financeiro que certas figuras… brancas, claro!
Mas como o racismo à brasileira, em sua face algorítmica, não nos dá sossego, uma vez que dificulta o exercício da nossa criatividade de atuação nas redes sociais ao nos trazer como demanda premente a denúncia de casos que, filmados, ganham repercussão levando seguidores a cobrar posicionamento, como se fosse algo que necessite de declaração de repúdio quando se é pessoa negra que sofre na pele ( quase um pleonasmo). O feed se torna uma avalanche de mais do mesmo, repetições de vídeos, falas e análises que causam algum impacto, mas que são rapidamente esquecidas, especialmente quando os criminosos desativam seus perfis ou aparecem naquele formato que todos já esperam trajados de camisa branca diante de um teleprompter com um pedido de desculpa ensaiado e falso iniciado sempre com a clássica: “ quem me conhece sabe”.
A Bahia, que tem a capital mais negra fora de África e conta com 80% da população de pardos e pretos, registrou, de janeiro a outubro de 2024, mais de 700 casos de injúria racial, o que representa um aumento de 4% em relação ao mesmo período do ano anterior e já é o estado com mais processos relacionados às questões raciais desde 2020, segundo dados fornecidos pelo MP-BA. Apesar de alarmante e estarrecedor, as denúncias mostram que há maior entendimento a respeito de como a violência racial se dá, inclusive disfarçada em sutilezas nas relações interraciais cotidianas. Outro fator que pode explicar o aumento de tais registros é a mudança na lei, que equiparou o crime de injúria racial ao racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível, além do orgulho de sermos pretas e pretos que não negociamos nossa dignidade.
É um bálsamo termos a frente do Ministério Público da Bahia a promotora Lívia Vaz, intelectual negra e militante antirracista com uma atuação que muito contribui para a reparação dessa desigualdade histórica na direção da busca por equidade. Ainda assim, vozes como esta em espaços de poder são exceção que confirma a regra do que é ser negra/negro não só na Bahia, mas em qualquer território da diáspora.
O que vem depois disso é a acusação de que pessoas negras “só falam de racismo” ou que a “militância não descansa”, uma incoerência lida como um ardil do próprio racismo que exime seus beneficiários de se pensarem na estrutura que operacionaliza a violência racial colocando todo peso sobre a parcela da sociedade que é vítima. Como se falar das dores causadas por essa chaga secular fosse uma opção… como se constatar que o racismo mata simbólica e fisicamente fosse, para nós, uma forma de engajar conteúdo.
Quem dera pudéssemos “nos mimar” exercendo o direito basilar de ostentar, apenas, nossa existência criativa, potente e multifacetada, que dera…
Joselice Souza, Professora de História na Educação básica pela rede estadual ( SEC-BA), mestra em educação, pesquisadora das relações étnico raciais, militante antirracista.
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