É instigante a propósito da discussão sobre políticas afirmativas, assunto que entrou na agenda política brasileira, trajetórias das Forças Armadas norte-americanas que foram as primeiras instituições a encerrar com a segregação racial naquele país.
No caso norte-americano a II Guerra Mundial foi um divisor histórico e social. Prestes a iniciar o conflito, líderes dos movimentos negros daquele país discutiram se incentivariam ou não o alistamento dos jovens da comunidade para irem lutar na Europa. Na visão desses ativistas, o tratamento recebido pelos afro-americanos nas Forças Armadas, apesar das contribuições nos conflitos anteriores permanecia desfavorável. A conclusão a que chegaram esses representantes foi adotar a estratégia baseada numa dupla ação.
Eles decidiram apoiar o ingresso dos jovens nas instituições militares com vistas a alcançar dois objetivos: combater o nazismo na Europa, articulada com a tática de lutar contra o racismo nos Estados Unidos da América.[1]
Milhares de afro-americanos foram enviados aos vários teatros de guerra em que se desdobrou o conflito. Dos vários corpos organizados o que mais se destacou foi 99th Squadron, Tuskegee Airmen. Ativado em março de 1941, os treinamentos começaram oficialmente em 19 de julho, as instruções de vôo em 25 de agosto, do mesmo ano, em território norte-americano. Contou inicialmente com 33 pilotos e 27 aeronaves.
Afro-americanos haviam ocupado várias funções nas Forças Armadas durante os conflitos em que o País se envolveu, mas na condição de pilotos militares era a primeira vez. A ideia de criar a Tuskegee Air Force Flying School foi defendida pela National for the Advancement of Colored People (NAACP), entidade norte-americana de combate ao racismo, que vislumbrou na ação um mecanismo de luta contra a segregação nas organizações militares norte-americanas.
No total, 278 homens afro-americanos receberam treinamentos para atuar no 99th Squadron. Os tuskegees foram incluídos no 33rd Group, em Fardjouna, na África do Norte, em 1943. No mês de junho, passaram a integrar a 324th Fighter Group, com o papel de escoltar bombardeiros ao longo da costa da Sicília.
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No ano seguinte, participaram da Operação Strangle destinada a deter tropas alemãs que pudessem ameaçar posições conquistadas pelos aliados. Durante a invasão da Normandia, deram apoios aos esquadrões convencionais em 31 operações. O 99th Squadron também tomou parte da conquista de Cassino, em 17 de maio, posição tomada aos alemães.
O desempenho dos tuskegges motivou o general Mark Clark, comandante do 5º Exército, norte-americano, a pedir o apoio deles para proteger suas tropas. Da mesma forma, agiu o general Cannon, comandante da 12ª Força Aérea. Ao final, o 99th Squadron estabeleceu o recorde de realizar centenas de missões sem ter perdido qualquer avião bombardeiro que estivesse protegendo.
Um ano antes de encerrar-se o conflito, O Senador McCloy, assistente da Secretaria da Guerra, foi incumbindo de coordenar a comissão de estudos sobre o desempenho dos tuskegees. As discussões aconteceram em sigilo, uma vez que havia o temor da reação e pressão da comunidade negra.
Os depoimentos dos membros propunham uma suposta inferioridade dos pilotos negros em comparação com desempenho dos brancos. Pontos de vistas apoiados em estudos de caráter antropológicos com vieses racistas. Com isso a intenção era a de manter a segregação na Força Aérea. Veio em defesa dos tuskegees o coronel Parrish, comandante da Tuskegee Air Force Flying School. Ele evocou as garantias constitucionais a que faziam direito os afro-americanos. Por fim, contestou a inferioridade dos pilotos negros, sugerindo que a participação deles fosse de 10% do efetivo da Força Aérea. O general Alan Gillem, por sua vez, afirmou que a integração racial era a melhor escolha para o país, esses argumentos deram suporte a continuidade a ação dos tuskegees.
Além dos tuskegees, afro-americanos participaram da II Guerra Mundial em outras corporações. Na Marinha, houve o caso do USS Mason, que esteve em atividade no Atlântico Norte. Entre os marines, atuaram cerca de 19 mil jovens, treinados no campo Montford Point, em Lejeune, na Carolina do Norte, alistados a partir de 1941, depois da publicação da Ordem Executiva n.º 8802, assinada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt.
Na logística, papel importante coube aos The Red Ball que atuaram em comboio, transportando suprimentos. Em média deslocavam entre 700 e 750 toneladas por dia, durante as operações na França e na Bélgica, calculou o general Bradley[2]. O esforço desses comboios foi decisivo, por exemplo, para a mobilidade dos carros de combate, sob o comando do general Patton.
Em razão dessas participações exitosas, os EUA encerraram com a segregação nas Forças Armadas seis anos antes do caso Brown v. Board of Education, portanto em 1948. De acordo com o professor Michael Higginbotham, da Universidade de Baltimore, o sistema militar dos EUA é uma das instituições mais radicalmente diversificadas do país. “Mais do que a maioria de nossas escolas, corporações, fundações ou serviços civis”.[3]
Essa participação não se restringe, analisou Higginbotham, somente aos escalões mais baixos das forças – 5% dos oficiais das Forças Armadas dos EUA são afro-americanos. O percentual sobe a 20%, quando o cálculo inclui as praças e sub-oficiais, o que significa que proporcionalmente, a presença desse segmento nas instituições militares superou proporcionalmente o quantitativo populacional, uma vez que os negros naquele País somam 12% de toda a população, de acordo com as estatísticas oficiais.
Historicamente, afro-americanos haviam atuado em todos os confrontos bélicos os EUA se envolveram, com destaque para a Guerra de Secessão. Há também presenças na I Guerra Mundial, Guerra da Coréia e Guerra do Vietnã.
No plano individual ganharam relevo as atuações de pessoas como Crispus Atucks, durante a Guerra da Independência; a família O. Davis, que teve membros na experiência dos Tuskegges (homens do ar), durante a II Guerra Mundial e o mais conhecido o general Colin Powel.
Powel foi o comandante das Forças Armadas norte-americanas durante a operação Tempestade no Deserto, que reuniu efetivos europeus e norte-americanos para lutar contra as os contingentes militares de Sadam Hussein, no Kwait e no Iraque, em 1991.
Para Michael Higginbotham, Colin Powel serve de exemplo para se demonstrar as possibilidades do sistema de políticas afirmativas norte-americano. “Powel beneficiou-se no Exército da reserva de cotas, o fato de ele ter conseguido alcançar os mais altos degraus da hierarquia militar aponta que essa iniciativa dá resultados positivos”.[4]
Algumas corporações cujas fileiras contiveram maioritária ou totalmente afro-americanos ganharam reputação ao longo da história norte-americana, como o 54th Massachusetts Volunteer Infantry (Guerra de Secessão); as 9th e 10th U.S Cavalary (também conhecidos como os soldados bufalos); o 99th Squadron Tuskegee Airmen (II Guerra); o USS Mason (II Guerra), o Montford Point (II Guerra) e o The Red Ball Truck (II Guerra).
As tropas sulistas comandadas pelo general Lee já estavam em combate contra as “yankees” do general Grant, quando o governador do Estado de Massachusetts decidiu, em 1862, organizar um regimento de infantaria, cujas praças seriam todos homens negros, a maioria deles cativos. A idéia foi de um afro-americano livre, na verdade ex-escravo, defensor da causa abolicionista, Frederick Douglass. Também alistaram-se homens do Tenesse e da Carolina do Sul.
Dois dos recrutas eram filhos do próprio abolicionista (N. Douglass e Charles Douglass). Os treinamentos iniciaram-se em 27 de novembro de 1862, no acampamento de Readville. A missão de comandar a unidade coube ao coronel Robert Gould Shaw – branco da mesma forma que todos os oficiais. As cartas que remeteu à mãe durante o período em que esteve à frente do 54th Massachusetts Volunteer Infantry estão arquivadas na Universidade de Harvard. Elas ajudaram na elaboração do filme Glorie (Tempo de Glória) que popularizou a história do regimento.
*Sionei Ricardo Leão é Jornalista
Notas
[1] Higginbotham, Michael. A military strike against racism. Jornal The Boston Globe, 25 de julho de 1998
[2] The History of Buffalo Soldier. [email protected]
[3] Higginbotham, Michael. A military strike against racism. Jornal The Boston Globe, 25 de julho de 1998
[4] Higginbotham, Michael. Justiça e discriminação racial. Rio de Janeiro, Plenário do Conselho Universitário da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ): XVII Conferência Nacional dos Advogados, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1 de setembro de 1999