Fonte: Blog Jorge da Silva –
Em foco uma falsa questão, a das cotas. Reproduzo abaixo mensagem enviada a mim e a outras pessoas no dia 29 de maio, em que o emissor externa a sua estranheza com a republicação pela BIBLIEX de livro que, a seu ver, constitui-se num retrocesso democrático, patrocinado com o dinheiro público.
Tenho afirmado que a polêmica em torno das cotas, na base do contra ou a favor, é redução grosseira de uma questão cara a todos os brasileiros, independentemente de raça (que não existe entre os humanos) ou cor/aparência (que existe), que é a de se saber se temos ou não uma questão racial não resolvida no Brasil. Ora, é preciso reconhecer que, tanto os que são contra quanto os que são a favor têm razão, o que tem a ver muito mais com a identidade social dos que sustentam uma coisa ou outra do que com argumentos supostamente racionais. Bem, aí vai a mensagem indignada do nosso missivista:
Estimados Amigos,
Hoje pela manhã, meu quartel recebeu, para fazer parte do seu acervo de livros que devem ser lidos, o livro de autoria de Ali Kamel, “Não Somos Racistas”, que foi reeditado pela editora Biblioteca do Exército (BIBLIEX). Fui informado que todos os quartéis do Exército no Brasil irão receber este livro para ser lido pelos militares.Sou militar, amo a minha profissão, entretanto, não posso me calar diante de um retrocesso financiado pelo dinheiro público, pois esses livros editados e doados aos quartéis têm financiamento do dinheiro público e demonstra uma incoerência com as Políticas Públicas que reconhecem a existência, indubitável, do racismo no Brasil e procura adotar ações para rechaçar qualquer forma de discriminação étnico-racial.
Não posso deixar que pessoas, de intenções desconhecidas, aproveitem a condição do nosso glorioso Exército, do qual eu tenho imenso orgulho de envergar sua farda, para desconstruir fatos e desinformar pessoas sobre a verdadeira realidade do nosso País.
Todos ganham quando há debates sobre como solucionar os verdadeiros óbices da grande Nação brasileira, entretanto para que haja os debates, têm que ser conhecidos os verdadeiros problemas e não camuflados e velados.
Por fim, espero que alguém amenize o retrocesso que essas doações com o dinheiro público podem causar a Nação brasileira.
Forte abraço,
Cumpre esclarecer que sei do patriotismo do missivista e da sua vibração com a Corporação a que pertence. Hesitei em repassar a sua mensagem, certo de que ele, como qualquer um que ouse revelar a nudez do rei, expõe-se à ira daqueles que, imbuídos da condição auto-atribuída de oráculos do saber e da verdade – e de guardiões do templo – aplicam-se à “missão” de dizer o que entendem ser certo, justo e bom para todos (óbvio, bom para eles…). E que, em rede, envidam todos os esforços no sentido de monopolizar as agências discursivas tradicionais (meios de comunicação, editoras, Academia etc.) para transformá-las em seus aparelhos ideológicos para implantar a “ditadura da opinião”. Não se contentam em defender as suas idéias. Consideram crucial não só blindar essas agências à entrada de “estranhos” como desqualificar os que não seguem a sua cartilha, na qual conseguem descrever a sociedade brasileira como harmoniosa, fraterna, sem preconceitos, igualitária, cordial e sem conflitos. Dizem isso em meio ao tiroteio, numa sociedade que parece querer vencer o campeonato mundial da matança. Recusam-se a considerar a hipótese de que os números da matança (de bandidos, supostos bandidos, policiais e pessoas indefesas) caracterizam, na verdade, o extermínio da pobreza, e tem mais a ver com a discriminação social, estrutural (e racial, sem rodeios) do que com a violência criminal stricto sensu. Querem que as coisas permaneçam como estão, com “cada macaco no seu galho”, como se isso ainda fosse possível, 121 anos depois da abolição da escravatura. Quem insiste em chamar a atenção para essa insensatez, como o nosso missivista, é execrado por eles com os carcomidos clichês da mitologia racial brasileira: “impatriota”, “semeador da discórdia”, “recalcado”, “ingrato”, “divisionista”, “racialista”, e por aí vai.
Esclareço ainda que o missivista se refere a livro de ninguém menos que o Diretor Executivo de Jornalismo da Rede Globo de Televisão, e articulista do jornal O Globo. Cidadão que hoje é tido como um dos principais opositores da luta dos negros brasileiros por igualdade, tal a forma obsessiva como se dedica a essa tarefa. Aliás, ele nega que haja negros no Brasil (e nem brancos, ele mesmo apresentando-se como pardo (sic)). Seríamos todos “misturados”, só “brasileiros”, tanto os pretos retintos como os brancos-de-olhos-azuis. Meia verdade, o que é pior do que uma mentira completa. Como se, no Brasil, o preconceito fosse de “origem” (de sangue), e não de “marca” (de aparência, aí incluídos os traços externos, como a cor da pele, segundo ensinou Oracy Nogueira). “Brasileiro”, agora, virou categoria de cor.
Tendo em vista a forma aberta e desinibida como o autor do livro em questão se utiliza dos veículos acima mencionados, resta saber se a sua oposição à luta dos negros por igualdade corresponde a uma deliberação particular, descolada da política das Organizações Globo a esse respeito, ou se reflete a posição institucional das mesmas, sendo ele apenas o intelectual orgânico designado para capitanear essa oposição.
Jorge da Silva –Nascido e criado no hoje chamado Complexo do Alemão, Zona da Leopoldina do Rio de Janeiro, Jorge Da Silva entrou para a Polícia Militar aos dezessete anos, tendo atingido o último posto, o de coronel. É doutor em Ciências Sociais (Uerj), com pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires (Equipo de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Letras (2006)). Professor-adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é atualmente coordenador de estudos e pesquisas em Ordem Pública, Polícia e Direitos Humanos, e pesquisador convidado do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (Nufep) da Universidade Federal Fluminense. Graduado em Direito e em Letras, com Mestrado em Ciência Política e em Língua Inglesa (Letras).
Na vida pública, além dos altos cargos na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, como os de subsecretário de Estado e chefe do Estado Maior Geral, foi coordenador setorial de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania do Governo do Estado (2000 – 2002), presidente do Instituto de Segurança Pública/ISP (2003) e, posteriormente, corregedor (interino) da Corregedoria Geral Unificada das Polícias Civil, Militar e do Corpo de Bombeiros, e secretário de Estado de Direitos Humanos (2003 – 2006).
Seis livros publicados; dezenas de artigos em publicações coletivas nacionais e estrangeiras;
Participação como conferencista, expositor ou debatedor em dezenas de seminários, simpósios e mesas redondas no Brasil e no exterior.
Áreas de interesse: segurança pública, direitos humanos, relações etnorraciais, semiótica.