Nessa semana, recebi um “pedido mandatório” da diretoria da escola privada na qual estudo. Me pediram, de forma indireta, mascarada de mera formalidade, que eu esquecesse que estou entre os poucos alunos negros da escola; que estou entre as poucas meninas negras; que estou entre as poucas meninas negras que não alisaram o cabelo; entre as poucas meninas negras que não alisaram o cabelo e tiveram a sorte de ter pais que apresentaram o orgulho que deve existir de sua cor; entre as poucas que, em uma escola onde o padrão é a branquitude, têm orgulho de ser o que são e sabem a necessidade de representar essa luta diária. Pediram-me que pensasse sobre o uso do turbante.
Por Maria Clara Viana Cardoso enviado para o Portal Geledes
Pois bem, pensei: o uso do turbante é bem mais que um simples pano enrolado na cabeça; é resistência, luta e consciência da ancestralidade e da identidade negra. No período da escravidão, o turbante era usado para diferenciar grupos e tribos e deixar viva uma cultura oprimida até então; hoje, significa orgulho da cultura, religião e da memória ancestrais.
Sempre lutei contra o racismo, mas fui privilegiada de nascer classe média (acho que é aí que me encaixo, não sei muito bem dessas coisas, mas sei que nada nunca me faltou, pelo contrário, sempre tive tudo). Tive sorte de conseguir meia bolsa em uma das melhores escolas da cidade. Tive sorte de ter uma família estruturada: tive pai, mãe e familiares que funcionaram e funcionam como segundos e terceiros pais. Tive “sorte”, coloco isso bem entre aspas (por favor), de nascer negra de pele clara. Isso só pode ser considerado sorte, porque é perceptível a maior aceitação social dessa parte dos negros. Enfim, fui muito privilegiada e tenho noção disso. Todo tipo de racismo que tinha tido contato eram histórias dos outros, eram histórias vividas pelo meu pai, pelo meu tio, por amigos distantes e era algo que achava que qualquer negro deveria saber como era o sentimento mesmo sem viver de fato. Mas não é bem assim. O racismo está enraizado em tudo, sim. E eu pensava que esse racismo velado não machucava tanto quanto qualquer outra expressão desse preconceito. Estava errada.
Nunca pensei que um “pedido mandatório” vindo de uma escola pela qual nunca desenvolvi sentimento de real pertencimento fosse me abalar tanto. Nunca pensei que a frase sobre o uso do turbante como descaracterização do uniforme fosse mexer tanto comigo. Mas foi difícil; muito! Porque esse pedido pode ser a formalidade que for, mas nenhuma formalidade deveria estar acima do significado, da representatividade, da luta, da força que um turbante traz. Infelizmente, estou em uma instituição privada, então dizer apenas que não vou me submeter ao pedido/ordem não é possível. Não posso viver no surrealismo e fingir que a escola é minha página do facebook. Mas me restam apenas dois meses nessa escola; posso até ser obrigada a guardar o turbante por um tempo, mas todo o seu significado ainda fica em mim e uma coisa eu digo, serão dois meses de luta constante (como sempre foi), mas agora com um acontecimento me dando mais motivos, mais força, mais objetivos.
“Ah! Mas você nem é negra, é moreninha”- ouvi muitas vezes essa negação identitária como se fosse elogio. Se sua identidade lhes é negada pelos outros ao seu redor, como ter orgulho de ser negro? Então, o que mais me preocupa em toda essa situação desconfortável que estou vivendo agora não é o meu estado emocional, porque o que eu acredito não vai mudar e isso vai servir pra me fortalecer. Porém, principalmente sendo em uma escola como essa, onde eu não sou o padrão e existem tantas meninas negras que precisam aprender o que é representatividade, as crianças negras que logo estarão no meu lugar, com a proibição do turbante, estarão perdendo uma das formas possíveis de se descobrir negro, de se aceitar negro, de se sentir confortável ao ostentar seus cachos ou seu black. Eu não posso baixar a cabeça e simplesmente aceitar me esconder. Mas tenho medo, porque todas as crianças pretas dessa escola poderão, quando estiverem em meu lugar, baixar a cabeça e se esconder por medo de não serem aceitas, por medo de estarem fora da formalidade do uniforme, por estarem descaracterizando o uniforme.
Por fim, quero dizer que não condeno as pessoas que regem a escola, todas elas fazem parte dessa sociedade racista e intolerante e são, de certa forma, vítimas do determinismo social, mesmo acreditando fielmente que todos podemos mudar e ir contra, por exemplo, uma criação muito tradicional. Porém, condeno atitudes como essa, analisando a escola como forma de criar cidadãos. Porque, repito, formalidade alguma deveria colocar-se acima do poder de transformação que um simples turbante pode ter. O uso do turbante não machuca ninguém; já a sua proibição, pode gerar uma onda de falta de representatividade, dificultando o empoderamento negro e alimentando a normatividade branca; consequentemente, uma nova geração de cidadãos, replicando a ideia racista de segregação, é criada. Isso sim, num futuro provável, vai machucar negros, vai marginalizar negros, vai matar negros. Então, como já disse, repito: o uso do turbante é bem mais que um simples pano enrolado na cabeça.
Maria Clara Viana Cardoso, 16 Anos