Sobre o homem branco brasileiro classe média

O texto é sobre um certo tipo de homem, muito comum na sociedade brasileira. Se encontra aos montes. Sendo assim tão comum, há algo na sociedade que os produz, por isso é tema sociológico. Se você se acha exceção, não se ofenda, mas nós, mulheres negras, temos falado com frequência desse homem, das nossas experiências negativas e, por vezes violentas na interação com eles. 

No filme “Nessuno mi puoi giudicare”, comédia italiana disponível na Netflix, uma Escort aconselha uma postulante com as seguintes palavras: “Quando sair com um homem de direita, você sorri. Eles adoram mulheres que riem o tempo todo. Quando sair com um de esquerda, confirme tudo o que dizem com a cabeça. Eles adoram se sentir inteligentes.”

Bem, convivo com homens brancos, de esquerda, progressistas, mais evoluídos humanamente que os de direita, por isso me ocuparei deles. Estes homens, em geral, se acham inteligentes, acima da média e não suportam banalidades. Parecem caminhar flutuando por cima dos meros mortais, pois quase tudo é medíocre e superficial para se envolverem. Eles adoram se comportar como juízes dos temais sociais e têm análises para tudo, tudo mesmo. Racionalizam qualquer conversa, aquelas sobre um pedaço de pão adormecido até sobre pagar as contas. Tudo isso para não ter que falar de si mesmos ou confrontar suas posições, a saber, construídas, mas que eles consideram muito originais. Evitam falar de si mesmos, pois estão acima disso. E, não falar de si é uma forma de continuar exercendo  poder nas relações. Afinal, acreditam não se exporem enquanto observam e julgam o mundo.

Eles trabalham com Direitos Humanos, são professores universitários, líderes de partidos e sindicados, artistas etc. Publicamente, são os sujeitos legítimos que, dificilmente recebem ataques como aqueles dirigidos às mulheres na vida pública. Como são e se sentem legitimados o tempo todo, porque têm a “pele certa” (livro de Paola Tabet), o sexo certo (e até o gênero), a classe social certa, a postura deles no mundo jamais é colocada em discussão. Como diz Donna Haraway, em Saberes Localizados, eles pensam ser os corpos não marcados que tudo vê, sem jamais serem vistos pelos outros.

Quando precisam participar de bancas acadêmicas, conferências e palestras, pedem a palavra primeiro e sempre alegam um outro compromisso em seguida para não terem que ouvir, sobretudo se a fala sucessiva for de uma mulher e não de outro homem branco que ele admira. Se mulheres falam da própria condição são emotivas demais e não objetivas. 

Se trabalham com Diretos Humanos ou na política partidária, são os guardiões dos direitos sentados no escritório, na frente do computador. Não fazem trabalho de base, não coletam dados nas periferias, mas delegam isso a alguém outro, geralmente uma mulher.  Em casa, também não costumam fazer mais que lavar a louça, pois a diarista ou a empregada cuida disso muito bem. Adoram cozinhar para os amigos, como um hobby, mas não como obrigação quotidiana. Estes homens jamais “sujam as mãos” no dia a dia para defender quem quer que seja de uma violência, de uma situação de racismo. Eles tendem a parar diante da cena e analisar para, nos fins de semanas com os amigos brancos, regado a vinho chileno e charuto cubano, fazer um lindo discurso sobre a desigualdade social do Brasil. 

Ele admira Mano Brown, mas se conversar com um negro comum, consciente do seu lugar no mundo, diz não suportar a raiva e que o acha radical demais. Afinal, para ele, temos que ver todos os lados e ponderar. Este homem, no dia a dia, não vai em feirinhas de arte preta, não orienta o aluno que não tenha feito intercâmbio em Paris, não convida para a sua casa/apartamento alguém que não tenha algum título e reconhecimento social, afinal, adora “conversas inteligentes”. 

Um homem desses, uma vez, diante do meu sotaque mineiro em São Paulo disse: “Nós, paulistanos não temos sotaque”. Eu ri, pois ele não se via e se escutava de fora e, dificilmente, alguém tem coragem de acentuar uma sua particularidade, por isso se acha o sujeito universal.  Ele também se acha equilibrado, jamais demonstra a sua raiva abertamente, mas é opressor e machista nas relações com as mulheres, sobretudo quando quer ter sempre a última palavra e fazer o resumo da conversa. Quando uma mulher percebe o mecanismo de dominação, ele passa a odiá-la.

Eles adoram o Feminismo, a liberdade feminina, mas só se relacionam com mulheres padrão: magra, cabelo liso e branca. Pode até transar com uma mulher negra, para ter uma experiência exótica e se dizer desconstruído. Vive na zona de conforto, lugar quentinho reservado ao homem branco, hétero e economicamente privilegiado. Não a abandona, jamais, para não correr riscos. A sua militância consiste em ir para a Avenida Paulista protestar contra a morte de George Floyd, desde que se sinta seguro. 

Um dos textos mais lindos que li sobre esta postura do homem branco intelectual é da socióloga negra, professora universitária estadunidense Felly Nkweto Simmonds. No seu texto “My body, Myself: How does a black woman do sociology?” ela diz não poder fazer como Pierre Bourdieu, renomado sociólogo francês que, ao responder a uma pergunta do seu discípulo, Loic Wacquant, sobre o porquê não fala de si, se justifica assim:

“É verdade que tenho uma espécie de vigilância profissional que me proíbe de adoptar o tipo de posturas egomaníacas que são tão aprovadas e até mesmo reaquecidas… esta relutância em falar de mim tem outra razão. Ao revelar certas informações privadas, ao fazer confissões bovaristas sobre mim, o meu estilo de vida, as minhas preferências. Posso dar munições às pessoas que utilizam contra a sociologia a arma mais elementar que existe – o relativismo. as questões pessoais que me são colocadas são muitas vezes inspiradas pelo que Kant chamaria “motivos patológicos”. (Tradução minha)

Simmonds, genialmente, analisa esta postura e responde: 

“Não posso ser, como Bourdieu sugere, um peixe numa água que “não sente o peso da água, e toma o mundo como certo”. O mundo que eu habito como aquele acadêmico, é um mundo branco. Este mundo branco tem uma relação problemática com a negritude. Os discursos académicos do social construíram a negritude como o “outro” inferior, de modo que mesmo quando a negritude é nomeada, ela contém um problema de relacionalidade com a brancura. Neste mundo branco, a questão é: Que relação pode uma mulher negra estabelecer entre ser socióloga e ser uma pessoa? quero argumentar que a compreensão intelectual do social não é suficiente, e que tal compreensão tem de examinar criticamente a relação entre as realidades individuais/pessoais e coletivas/sociais. Neste mundo branco, sou um peixe de água doce que nada na água do mar. Sinto o peso da água, no meu corpo. Para alguns de nós, é impossível escapar ao corpo e às suas construções, mesmo dentro da “máquina de ensino”. Espera-se não só que eu carregue o meu corpo, mas também que o confira. Tenho uma relação específica e clara com o conhecimento que ensino, através do meu corpo. A contradição para mim é que, embora possa ser claramente convidada a falar sobre questões de “raça”, é apenas quando escolho falar sobre as experiências da racialização  do meu corpo, que a minha autoridade para o fazer é questionada ou descartada como subjetiva e “confessional”. Espera-se que eu seja, mas não que eu saiba sobre o ser. Esta relação entre o ser e o saber expõe a fragilidade da insistência da teoria de que só podemos articular verdades através de uma epistemologia racional e objetiva da realidade social. o conhecimento ontológico é suspeito e, na pior das hipóteses, patologizado”. (Tradução minha)

É isso! Este homem branco, que toma distância do mundo e pode escolher não intervir nele diariamente, em situações de opressão, é privilegiado, pois seu corpo e a sua existência não estão o tempo todo ameaçados. Ele pode optar pelo silêncio sobre “informações privadas”, pode até admitir o corpo, mas tem o privilégio de permanecer desencarnado.  Para ele, conhecimentos são criados de fora de nós mesmos, fora dos nossos corpos, apenas nas nossas cabeças e, o nosso saber corpóreo, é apenas um ponto de vista ou ficção. Aliás, ele mede a experiência feminina pela experiência da sua esposa, mãe, irmã, todas brancas.  Este homem nos cansa. E, como nos cansa!


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia e autora do livro Cartas a um homem negro que amei, Editora Malê.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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