Sueli Carneiro revê trajetória feminista e de luta contra o racismo em livro – Hoje

Artigo produzido por Redação de Geledés

Uma das responsáveis por transformar o feminismo brasileiro, ao fazê-lo atender às demandas raciais, Sueli Carneiro batiza um selo que estreia com um livro de sua autoria, editado pela “pupila” Djamila Ribeiro. Lançamento acontece nesta terça (dia 4), no Sesc Pompeia, em São Paulo

Com um sorriso nos lábios, Sueli Carneiro segura com carinho no braço desta que lhes escreve e deixa claro que o objetivo de nosso encontro, uma longa conversa sobre sua vida, naufragara. “Não considero minha vida pessoal interessante e criativa, mas sou uma ativista e, desse lugar, fico confortável em falar”, diz ela, que dá raras entrevistas, e aceitou receber Marie Claire a pedido de nossa colunista, a filósofa Djamila Ribeiro. “Prefiro focar no meu livro e na proposta de Djamila”, diz Sueli, sobre Escritos de Uma Vida (Letramento, 238 págs., R$ 42). A obra que inaugura o selo Sueli Carneiro, criado por Djamila, é a primeira a reunir artigos escritos pela mais importante feminista negra do país. Com prefácio de Conceição Evaristo, compõe um panorama da jornada dessa filósofa de 68 anos que, ao contrário do que afirma, tem, sim, uma trajetória excepcional.

Nascida na Lapa, região oeste de São Paulo, Sueli é uma das principais articulistas da luta contra o racismo, com atuação semelhante à da também filósofa norte-americana Angela Davis, personagem emblemática do movimento em defesa dos direitos civis. Na trincheira desde o início dos anos 1970, se tornou militante sob a influência da revolução cultural e sexual de maio de 1968 e de pensadores como o norte-americano Malcolm X e os africanos Nelson Mandela, Patrice Lumumba e Samora Machel, entre outros que atuaram pela independência de países do continente. Sua única filha, a bailarina Luanda, de 38 anos, hoje radicada em Oslo (Noruega), foi batizada em homenagem à capital de Angola. “O feminismo está no bojo desses movimentos libertários, com as mulheres em busca de emancipação e liberdade sexual, respeito aos direitos reprodutivos e de quebrar o poder do patriarcado. E tudo isso acontecia durante a ditadura militar, sob alto grau de repressão. Era muito louco”, lembra Sueli.

Ao se engajar no feminismo, no entanto, ela provocou uma pequena revolução, levando as demandas raciais ao movimento, no que hoje conhecemos como feminismo negro – do qual Djamila se tornou a principal porta-voz. “O ativismo das mulheres brancas não dialogava com a questão racial”, explica a filósofa. “Houve tensão, e [a antropóloga] Lélia Gonzalez exigiu um reposicionamento sob a luz das contradições que a questão racial introduz na luta das mulheres”, descreve ela sobre a mineira Lélia (1935-1994), referência para Sueli e outras de sua geração.

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Mas sua luta começou muito antes. Sueli foi vítima, ainda bebê, do mal de simioto, desnutrição causada por alergia ao leite de vaca. “Por causa da doença, a família a via como uma criança frágil, que precisava de cuidados extras”, conta a escritora Bianca Santana, que entrevistou amigos, parentes e a própria filósofa para traçar sua biografia – ainda sem título, tem lançamento previsto para 2019, pela Companhia das Letras. Mais velha de sete filhos, Sueli se dedicou aos estudos e ao trabalho sob a influência da mãe, Eva, costureira que abandonou a profissão, fazendo trabalhos esporádicos, a pedido do marido, o ferroviário José Horácio. “Para a mãe, era muito importante que suas filhas não vivessem a mesma dependência econômica do marido e do casamento”, diz Bianca. Já do pai, Sueli teria herdado os valores. “Ele era um homem justo e correto, e isso os conectava”, acredita a biógrafa. “A mãe lhe deu também a consciência de que eles eram pretos e, da porta para fora, ela tinha de saber se defender quando fosse necessário.”

Essa proteção, no início, era por meio da força. A própria Sueli assume ter sido uma jovem briguenta. Também não levava desaforo para casa. “Por duas vezes, um padre a chamou de Pelezinho, então dona Eva mandou a filha responder a ele que Pelezinho era aquilo que estava sob a saia da mãe do padre”, descreve Bianca, rindo. Mas o que abalou a harmonia na casa dos Carneiro foi o namoro com Maurice, jovem estudante branco. “Ouvi de Sueli, dos irmãos dela e do próprio Maurice que foi um choque”, descreve Bianca. “Acho que esse, aliás, foi um dos motivos para eles se casarem”, acredita. “Eram rebeldes da geração 68 e questionavam as autoridades, as regras. Quando sua mãe disse que eles não podiam ficar juntos de jeito nenhum, ela encarou como um desafio extra.”

“O feminismo está no bojo de movimentos libertários, com as mulheres em busca de emancipação e liberdade sexual. Tudo isso acontecia durante a ditadura, sob alto grau de repressão”

Sueli Carneiro

Pai de sua filha, Maurice entrou com Sueli na Faculdade de Filosofia da USP, e eles se casaram em 1973. Ao seu lado, ela passou a frequentar o candomblé, religião de matriz africana decisiva em sua formação, mas sua grande virada aconteceu no mesmo ano da separação, em 1982, quando ao lado de Dulce Pereira, Teresa Santos “e outras negronas da época”, como descreve Sueli, formou o Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo. “Após separar, ela se tornou uma líder”, acredita Bianca. “Essa é a leitura que eu faço, e Maurice concorda: a separação foi importante para Sueli assumir uma voz pública mais consistente”, diz a escritora.

No coletivo, Sueli teve ainda o desafio de convencer o movimento negro. “Eles tinham o mesmo problema das feministas: só enxergavam a questão da raça, sem considerar o gênero. Essa contradição foi objeto de crítica das mulheres, que transformaram questões como a saúde em prioridade”, diz Sueli.

O resultado dessa efervescente atuação, descrita em “Enegrecer o Feminismo”, um dos textos de Escritos de Uma Vida, reflete-se nos prêmios por sua atuação em favor dos direitos humanos que estampam as paredes da sede do Geledés – Instituto da Mulher Negra, criado há 30 anos por Sueli e outras militantes. O nome, que batiza também um portal de notícias, remete a uma tradição iorubá, um dos maiores grupos étnicos-linguísticos da África Ocidental, para quem gèlèdes são sociedades secretas de mulheres criadas para garantir o bem-estar da comunidade.

Aqui, Geledés é Sueli Carneiro. Sentada numa das salas da entidade, que ocupa meio andar de um prédio no centro de São Paulo, ela se empertiga na cadeira, seus olhos brilham e o cansaço na voz desaparece por completo. “Um orgulho que tenho é que o Geledés inspirou a organização de mulheres no país inteiro”, diz ela. “Ajudamos a aprovar a criminalização do racismo, na Constituição de 1988, e criamos a assessoria jurídica SOS Racismo.” Mas ela ressente-se de que parte dessas lembranças não estão devidamente documentadas. “Minha geração não conseguiu desenvolver essa construção de memória. Por isso, a iniciativa da Djamila é importante”, acredita ela, sobre o selo que irá lançar pensadores brasileiros e da diáspora africana. “Ter meu nome é uma reverência com a qual ela me honra, mas o importante é a audácia de construí-lo.”

Na outra ponta da mesa, a pupila Djamila acompanha esboçando um sorriso vez ou outra. “Sempre fomos os sem mídia, e a geração da Djamila tem usado a internet de maneira tão eficiente que causou um impacto na própria mídia hegemônica. Hoje, todos têm um ‘pretinho’ de plantão para dar conta da demanda e da audiência”, pontua Sueli, que costuma pegar no pé da discípula quando ela se mete em discussões nas redes sociais. “Também fui briguenta, mas sempre digo: brigue com quem é maior que você ou do seu tamanho. Quem é menor não importa. Não te acrescenta nada.”

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