Uma mãe obstinada: maternidade negra no pós-abolição (Recife, 1890)

No habeas corpus aberto em 1890 na cidade do Recife, encontramos a história de Gertrudes Rosario Maria da Conceição, acusada da faina de “pegar crianças”. Gertrudes era uma criada doméstica de 21 anos, ex-escravizada, analfabeta, solteira, africana – pela idade importada ilegalmente para o Brasil – e mãe de Olindina, alvo do litígio. 

Em algum período próximo ao 13 de maio de 1888, Gertrudes decidiu ir para Belém. Como tinha uma filha “em tenríssima idade”, precisou deixá-la aos cuidados da família Siqueira, de modo a garantir um teto para a menina enquanto se aventurava nessa empreitada. Anos depois, quando resolveu morar no Ceará, resolveu buscar sua filha. De início, tentou recuperá-la de forma amistosa, mas sem sucesso. A fim de alcançar o seu intento, pediu para sua amiga, Maria de França, uma liberta que tinha conhecido no Pará, que resgatasse a menina da casa dos Siqueira. Elas concordaram em partir juntas no primeiro vapor para Fortaleza após a condução de Olindina. Mas Maria de França levou a menina errada; a criança retirada foi Emília, filha dos Siqueira, que ficou alguns dias com as duas mulheres que, escondidas na casa de uma conhecida – provavelmente outra liberta –, buscavam uma solução para o imbróglio. Porém foram descobertas e mesmo sem culpa formada, Gertrudes foi remetida para a Casa de Detenção, pois segundo o Subdelegado do Recife, seu crime teria resultado em “graves tumultos” e colocado em “sobre-salto” as famílias do Recife.

Prisão de Gertrudes Rosario na casa de Detenção em 1890. Fonte: Diário de Pernambuco, Parte Oficial, 13 de abril de 1890, p. 1.

Segundo as manifestações feitas pela classe senhorial no auge do movimento abolicionista e no imediato pós-abolição, a escravidão teria produzido desordeiros e vagabundos. Gertrudes, que em uma notícia de jornal foi apontada como mulata, tinha os traços físicos vinculados a um estereótipo reforçado inclusive pelo discurso médico, que designava mulheres negras como lascivas e corrompidas. A cor e o passado de cativeiro tornavam o intento de Gertrudes ainda mais difícil. 

Outro elemento relevante na trajetória de Gertrudes é sua condição de migrante. É importante considerar as mulheres como sujeitos migratórios, pois os estudos sobre a temática colocaram-nas à margem desse movimento. Para mostrar as mulheres nesse processo, é preciso aguçar o olhar e revisar as categorias de migração laboral e familiar. A migração protagonizada por mulheres é parcamente documentada e colocada em segundo plano como se os fluxos migratórios nacionais e locais obedecessem somente aos ditames masculinos diretamente relacionados à busca por trabalho. Os movimentos espaciais protagonizado por mulheres dever-se-iam ao seu papel como mantenedoras do seu lar na ausência de maridos e pais. 

Um dado macroestrutural que talvez tenha influenciado a escolha do Pará como destino da jovem liberta devia-se ao despontar da economia da borracha. A expansão gomífera nas décadas de 1870 e 1880 produziu riquezas expressivas no Pará e a província recebeu grande fluxo de migração nordestina. Em fins do século XIX o Pará converteu-se em lugar promissor para as trabalhadoras e trabalhadores por oferecer ocupações nos seringais, mas também na casa das famílias remediadas e enriquecidas da região. Essa função poderia ser desempenhada por Gertrudes, identificada como lavadeira e engomadeira no auto de qualificação do habeas corpus. Temos ainda outro dado que diz respeito à questão da liberdade no Pará: com a lei do Ventre Livre e, posteriormente, a lei n° 5.135, em 13 de novembro de 1872, houve uma movimentação de proporções vultosas no Pará em prol da liberdade de escravizados. 

Não temos dados precisos sobre as escolhas envolvidas nas experiências de migração da jovem mãe. Porém, acreditamos que o passado escravo também contou para a escolha do deslocamento para região distante do local onde tinha sido escravizada, a fim de garantir maiores ganhos financeiros e mais autonomia. 

Aventurar-se fora de Recife, longe da rede de apoio, implicava riscos. Migrar na companhia de uma criança pequena dava bastante trabalho. Talvez não fosse uma alternativa para quem iria viver em novas terras em busca de ocupação que não absorveria uma menina dependente dos cuidados intensivos de um adulto. Ter de deixá-la aos cuidados da família Siqueira deve ter envolvido uma série de dilemas emocionais e muito sofrimento. 

A escolha de partir deve ter influenciado na percepção pública de que o amor maternal de Gertrudes não era tão legítimo. Para a Igreja Católica, o modelo da Virgem Maria incorporava a simbologia da maternidade e esse modelo organizava e limitava a maternidade real. Ser trabalhadora (o que envolve ausências), ter pele escura e ser ex-cativa eram elementos suficientes para por em questão os direitos maternos de mulheres negras. Na carta enviada aos jornais Diário de Pernambuco, Gazeta da Tarde e a Epocha, Lydia Siqueira, a mãe da criança levada por engano, mobilizou seu lugar de mãe amorosa próprio das pessoas pertencentes aos estratos médios e brancos do Recife oitocentista, um lugar de mãe distinto daquele ocupado por Gertrudes. 

Não podemos afirmar que os Siqueira não nutrissem amor por Olindina, mas receber crianças para serem cuidadas ou para comporem a criadagem era prática comum no século XIX. Ademais, sabe-se que o trabalho doméstico envolvia castigos, abuso sexual, ausência de salário e realização de tarefas com disciplina e obediência.

Félix Cavalcanti, homem remediado mas de nome influente na vida social e política pernambucana no século XIX, registrou como conseguia criadas em seus relatos de memórias. Ele foi amanuense – funcionário de repartição pública responsável pelas correspondências – da Santa Casa de Misericórdia do Recife por um tempo, e pelo que se observa, não assinava termos de tutela ou contrato formal perante a Santa Casa. Por exemplo, em 1882, ele afirmou: “veio a minha casa a menor Maria, com idade de 8 anos; é parda, e me foi entregue por sua mãe que se chama Francisca”. Já em 1883 recebeu a menor Carolina, “a qual me foi entregue pelo Dr. Olympio Marques, que pretendendo recolhê-la ao colégio das órfãs e não conseguindo e não tendo casa para conservá-la, eu ofereci a minha que ele aceitou”. 

A fim de evitar que Olindina firmasse contrato de soldada (que lhe conferisse um soldo, um valor em dinheiro) ou permanecesse com os Siqueira é que Gertrudes, obstinada em traçar outro futuro para sua filha, decidiu adotar o recurso extremo que resultou em sua prisão.

Enquanto Gertrudes esteve recolhida na Casa de Detenção, o carcereiro encontrou em seu poder uma carta de João Rocha, que acreditamos ter uma ligação amorosa com ela. É comum nos documentos que tratam da liberdade de escravizados encontrar libertandas e libertas recebendo auxílio de parentes, amigos e amásios para levar adiante o projeto de conquista e efetivação da liberdade. Gertrudes teve apoio de amigas e do companheiro na empreitada de retomar o vínculo com a pequena Olindina. Ela, por exemplo, precisou da assistência de alguém alfabetizado para ler a carta particular que estava sob seu domínio. A missiva enviada por João Rocha tem o teor seguinte:

“não deve vir sem trazer a sua filha, trate de lh’a entregarem já, de forma que não perca o vapor. Se não quiserem entregar sua filha fale com Dona Leonor que ela tudo arranjará. Se faltar dinheiro para a passagem peça a Dona Leonor ou ao Senhor Porto, mostrando-lhe esta carta eles não deixarão de dar.”

O nome presente na carta é revelador do contexto em que escravizados lutavam por suas liberdades em Recife. A pessoa mencionada é a modista Leonor Porto, uma importante liderança e fundadora do clube abolicionista feminino Ave Libertas. Cerca de dois anos antes do episódio aqui tratado, ela enviou cativos fugidos para outras partes da província e até mesmo para fora dela. O Ceará foi um dos destinos mais recorrentes, principalmente depois de 25 de março de 1885, quando ocorreu a abolição na referida província. A militante envolveu-se em atividades legais e ilegais para auxiliar os cativos na conquista da liberdade. No pós-abolição, além de celebrar os feitos que culminaram na lei de 13 de maio de 1888, Leonor envolveu-se na criação de escolas noturnas para alfabetizar e ensinar ofícios aos libertos. Na carta que Gertrudes portava, dizia-se que Leonor Porto poderia conceder-lhe dinheiro para a passagem do vapor. Com essa história conseguimos saber como os militantes atuaram junto aos egressos do cativeiro, indo além das agitações abolicionistas da década de 1880.

O trabalho pesado como criada doméstica, a angústia e as perdas – trazida do continente africano, escravizada ilegalmente, sem poder restabelecer os laços com a filha e depois presa. São experiências indicativas da precariedade que atravessou as vivências da ex-cativa. A vida de Gertrudes foi marcada por vicissitudes e deslocamentos, uns grandes e outros pequenos. Ela viveu em três lugares diferentes: inicialmente, foi sequestrada da costa da África, foi escravizada em Recife, passando pelo Pará e, por fim, retornou para a capital pernambucana, alguns anos após a abolição do cativeiro. O fenômeno da escravidão e, em alguns casos, as experiências dos libertos no imediato pós-abolição, não pode ser apreendido a partir de um único lugar; deve-se levar em conta o cruzamento de múltiplas circulações. A procura por determinados territórios esteve ligada à intenção de afastar-se do mundo da liberdade incompleta.

Por fim, podemos intuir que, para Gertrudes, liberdade também significava o direito de ficar com sua filha, algo semelhante ao observado por Camillia Cowling para mulheres escravizadas no Rio de Janeiro e em Havana: a luta pela custódia dos filhos como parte do seu projeto de emancipação.

O destino de Gertrudes e Olindina após a conclusão dos autos é desconhecido. Mas podemos imaginar que mais uma vez em liberdade, Gertrudes continuou em seu esforço para assumir a criação de sua filha e o controle de sua família.

 

Assista ao vídeo da historiadora Maria Emilia Vasconcelos dos Santos no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados). 

Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais). 

 

Maria Emilia Vasconcelos dos Santos

Doutora em História pela Unicamp e professora da UFRPE, E-mail: [email protected]; Instagram @emiliavas

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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