Aparição distorcida do negro na literatura reforça preconceito

Joyce Fonseca

Os escritores Nei Lopes, Conceição Evaristo, Paulo Lins e Ana Maria Gonçalves

por Rodrigo Caesarian no UOL

A pesquisadora Regina Dalcastagnè leu, entre 1990 e 2004, um total de 258 romances de escritores nacionais publicados por três das principais editoras do país. Sua leitura resultou no livro “Literatura Contemporânea – Um Território Contestado” (2012), no qual aponta que 94% dos autores brasileiros são brancos –mesma cor de 92% dos personagens. Dalcastagnè encontrou pouco mais de 5% de protagonistas negros, e quase sempre apresentados como bandidos, empregados domésticos ou escravos e que, em mais da metade dos casos, morrem assassinados. Na vida real, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa) apontam que a população que se declara negra no Brasil é de aproximadamente 53%.

Cruzando os dados, é fácil notar: a representatividade do negro na literatura nacional está muito aquém da sua presença e importância na sociedade brasileira. “O rótulo ‘literário’ é usado como elemento de exclusão: a produção dos escritores de fora da elite aparece como testemunho, documento sociológico, e não como literatura”, apontou a pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília) em entrevista ao jornal “Cândido”.

Simone Paulino, editora da Nós, lembra que “a representação ficcional é uma questão que merece um olhar mais detido porque, em geral, o negro é de fato representado em papéis de coadjuvantes, exceto quando é ele o bandido ou o malandro. Naturalmente, essa aparição e exposição distorcidas reforçam estereótipos e preconceitos, e precisa urgentemente serem desconstruídas em favor da construção de uma identidade nacional, com tudo de escorregadio que essa expressão comporta, mais verossímil”.

Seja entre expositores das livrarias, resenhas nos meios de comunicação e programações de eventos literários, é possível contar nos dedos os autores negros que se destacam no país. Difícil fugir de poucos nomes como Paulo Lins, Nei Lopes, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e Joel Rufino dos Santos. “É muito pouco para a imensa riqueza cultural que os negros têm para compartilhar com o Brasil”, defende Simone.

“O espaço do escritor negro no mercado editorial brasileiro como um todo é ínfimo, quase inexistente. Estudos mostram que a maioria dos escritores nacionais são homens, brancos, héteros, jornalistas ou acadêmicos, residentes na região sul e sudeste do país, nas capitais mais ricas. O quadro começa a mudar lentamente com a emergência da chamada literatura marginal ou periférica”, diz a editora.

Uelinton Farias Alves, jornalista, escritor, pesquisador e curador da FlinkSampa –evento literário focado na cultura negra–, faz uma análise que extrapola o mercado editorial. “A situação do negro no Brasil continua desigual em todos os aspectos da economia e da cadeia produtiva. O escritor negro passa pelos critérios de uma seletividade mercadológica que o exclui. Suas obras são mais rigorosamente avaliadas, o investimento em seu livro é reduzido, ele não é exposto e nem recebe apoio publicitário. Independente da qualidade do seu texto literário, o escritor negro publica menos do que um autor branco”.

Esses elementos são decisivos para que os autores negros tenham pouco espaço, mas não são os únicos, segundo Alves. “Há a invisibilidade notoriamente criminosa que as grandes corporações, incluindo mídias e editoras, impõem em benefício dos outros que não são negros. Ora, pensar que iremos empoderar o escritor negro em uma sociedade onde os negros aparecem estereotipados ou estão fora da grande mídia é uma brincadeira”.
Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

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Retrato do escritor Machado de Assis

A importância do espaço

Alves é também especialista em literatura brasileira do século 19. Suas pesquisas focam principalmente na obra de Cruz e Sousa, um dos escritores negros mais importantes da história do país. De olho na tradição literária do país, encontramos poucos, mas grandes exemplos de negros que alcançaram reconhecimento por conta de seu talento para lidar com as letras, a começar por Machado de Assis. Lima Barreto, José do Patrocínio, Luiz Gama e Maria Carolina de Jesus são outros que compõem esse time.

E por que essa conquista por mais espaço se faz tão necessária? “Porque a literatura de um país deve, idealmente, representar a diversidade de vozes e matizes e gêneros que a compõem e, deste perspectiva, como em outras artes, o percentual de representatividade do negro é ainda muito pequeno”, explica Simone.

Mas essa mudança não virá de uma hora para outra, aponta Alves, que lembra que para ampliar sua voz na literatura o negro precisa conquistar mais espaço em toda sociedade, a começar com o acesso à educação básica de qualidade e universitária. O pesquisador também vê como de suma importância que a lei que ordena a inclusão da história da cultura afro-brasileira na rede pública de ensino seja respeitada. “A partir da compreensão histórica do negro na construção da sociedade podemos pensar em mais espaço e, disso, consolidar a conquista da cidadania”.

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